por Gabriel de Arruda Castro
Como responsabilizar as autoridades chinesas por terem sido negligentes e depois tentado acobertar as origens de uma pandemia que matou milhões de inocentes
Acovid-19, uma espécie de coronavírus, eclodiu a poucos quilômetros de um laboratório que manipulava espécies de coronavírus. Por isso, é surpreendente que tenha levado três anos até que o governo norte-americano — ou melhor, parte dele — admitisse que o vazamento laboratorial é a causa mais provável da pandemia. Mas foi isso que aconteceu: agora, e só agora, o Departamento de Energia dos Estados Unidos passou a considerar esta como a explicação mais consistente. A informação foi divulgada pelo Wall Street Journal nesta semana, com base num relatório sigiloso de inteligência enviado pela Casa Branca a congressistas norte-americanos.
A mudança de postura do Departamento de Energia é significativa, porque o órgão tem a função de supervisionar as pesquisas em laboratório nos Estados Unidos. A guinada acontece no momento em que a tese originalmente mais difundida (a de que o vírus foi transmitido de animais para humanos nas imediações de um mercado de peixes) perde força.
Há dois anos, a Casa Branca formou um grupo de trabalho, com oito órgãos do governo norte-americano, para tentar desvendar a origem da covid-19. Até o momento, quatro desses órgãos veem a origem natural como a melhor explicação, dois não tomaram partido e dois acreditam que o vazamento laboratorial é mais provável (o próprio Departamento de Energia e o FBI, que havia mudado de postura em 2021). Ou seja: ainda não há consenso. Mas a tese do vazamento laboratorial tem ganhado força.
A versão oficial da Organização Mundial de Saúde (OMS), divulgada no primeiro semestre de 2021, era que a pandemia teve início num mercado de peixes em Wuhan, na China. Poderia fazer sentido, já que animais como morcegos e pangolins (um pequeno mamífero) podem ser infectados por diferentes tipos de coronavírus. Mas a tese é problemática — dentre outros motivos, porque o vírus mais parecido com a covid-19 é o RaTG13, que foi coletado num morcego justamente no Instituto de Virologia de Wuhan. A similaridade é de 96,2%.
O Instituto de Virologia de Wuhan tem duas sedes: uma fica a cerca de 13 quilômetros do mercado de peixes. A outra fica a aproximadamente 30 quilômetros.
Boa parte do apoio inicial à tese da origem natural da covid-19 se baseava em um artigo publicado na revista Nature Medicine, em março de 2020, e que fez uma análise preliminar do perfil genético do vírus. Hoje, a página do artigo adverte que, de lá para cá, “tem havido uma discussão considerável sobre a origem do vírus”. Em outras palavras, as conclusões do artigo podem não se sustentar com base nas novas evidências.
Relatório já apontava indícios
Embora a comunicação do grupo de trabalho do governo norte-americano seja protegida por sigilo, o resultado de uma investigação feita no Congresso norte-americano traz algumas pistas. No ano passado, um relatório produzido pela bancada do Partido Republicano no Comitê de Saúde do Senado já havia concluído que a origem mais provável era um “incidente relacionado à pesquisa” no Instituto de Virologia de Wuhan.
A investigação, que envolveu nove pesquisadores, por um período de 15 meses, conseguiu resgatar informações que constavam do site oficial do instituto e acabaram apagadas da internet quando a pandemia surgiu. A página publicava relatórios semanais sobre as atividades do laboratório. Os documentos apresentam um tom burocrático, até que, em 12 novembro de 2019, algo parece ter mudado. Como que se justificando às autoridades do Partido Comunista, o autor do relatório fala sobre a ocorrência de vazamentos de vírus manipulados no laboratório: “Abrir os tubos de ensaio armazenados é como abrir a Caixa de Pandora. (…) Apesar de várias medidas preventivas e de proteção, é necessário que a equipe do laboratório opere com muita cautela, para evitar erros operacionais que gerem perigos. Todas as vezes que isso aconteceu, os membros do diretório do Partido no Laboratório Zhengdian correram para a linha de frente e tomaram medidas reais para mobilizar e motivar outros pesquisadores”, diz o documento. Sete dias depois, a unidade recebeu a visita de Ji Changzheng, diretor de segurança da Academia Chinesa de Ciências. Um breve resumo publicado no site do instituto mostra que ele tinha orientações do próprio líder máximo da China, o ditador Xi Jinping, para tratar de uma “situação complexa e grave”.
Outra pista importante coletada na investigação republicana foi o fato de que um time de cientistas chineses, sob o comando de um virologista militar chamado Zhou Yusen, conseguiu desenvolver uma vacina contra a covid-19 antes de qualquer grande companhia do ramo farmacêutico. Eles não conseguiriam isso se não tivessem obtido acesso ao vírus ainda em novembro. A China só anunciou ao mundo que havia algo errado em 27 de dezembro.
Conforme essas e outras evidências surgiam, até mesmo a OMS pisou no freio. Em março de 2021, um relatório da Organização Mundial de Saúde havia concluído que a origem laboratorial era “extremamente improvável.” Em junho de 2022, a entidade adotou uma postura mais cautelosa e afirmou que a questão estava em aberto.
Dissidência silenciada
A mudança de postura é ainda mais significativa quando se leva em conta que, durante os meses iniciais da pandemia, a tese do vazamento laboratorial foi classificada como teoria da conspiração por parte de autoridades, veículos de comunicação e agências de checagem de fatos. Isso justificou a remoção dessas alegações das redes sociais.
Em 2020, a CNN noticiou que a teoria “quase com certeza” era falsa. Na mesma época, o jornal The New York Times acusou o senador republicano Tom Cotton de espalhar o “boato sem fundamento” sobre a origem laboratorial.
Agora, quem acessa páginas de checagem, como o PolitiFact, encontra mensagens como esta: “Quando esta checagem de fatos foi publicada pela primeira vez, em setembro de 2020, as fontes do PolitiFact incluíam pesquisadores que afirmavam que o vírus Sars-CoV-2 não poderia ter sido manipulado. Essa afirmação é agora mais amplamente contestada. Por esse motivo, estamos removendo essa verificação de fatos de nosso banco de dados”.
Mesmo antes da notícia sobre o Departamento de Energia, uma pesquisa de opinião feita pela empresa Morning Consult já mostrava que a teoria do vazamento laboratorial é a mais popular entre os moradores dos Estados Unidos. Segundo o levantamento, 44% dos norte-americanos acreditam que o coronavírus saiu do laboratório de Wuhan, ao passo que 26% creem que a pandemia teve origens naturais. Entre os republicanos, a porcentagem dos que acreditam em um vazamento é de 67%.
Nova investigação no Congresso norte-americano
Em fevereiro, a Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados) dos Estados Unidos criou um subcomitê para investigar esse e outros assuntos. “As evidências apontando para o vazamento do vírus de um laboratório inseguro em Wuhan continuam se acumulando”, disse, na ocasião, o deputado republicano Brad Wenstrup (R-Ohio), que preside o comitê.
Além de apurar se o vírus teve origem no laboratório chinês, o subcomitê pretende saber por que (e como) recursos públicos dos Estados Unidos foram usados para financiar pesquisas no Instituto de Virologia de Wuhan, para conduzir pesquisas de “ganho de função” (aumento do potencial) em coronavírus encontrados em morcegos. A conexão se deu por meio da EcoHealth Alliance, uma entidade não governamental que, por sua vez, atuava em parceria com o laboratório de Wuhan. O Instituto Nacional de Saúde (NIH, na sigla em inglês) repassou US$ 3,7 milhões recebidos à EcoHealth, que aplicou US$ 600 mil no laboratório de Wuhan, antes que a parceria fosse cancelada, em abril de 2020.
Wenstrup disse que Anthony Fauci, chefe da Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAD, na sigla em inglês), órgão subordinado ao NIH, ignorou as evidências, ao sustentar que o vírus surgiu no mercado de peixes. “O Dr. Fauci foi alertado desde o início que a covid-19 tinha sinais de um vírus manipulado, mas ele pode ter escolhido acobertar isto em vez de trazer a público”, afirmou o deputado. Fauci, que se tornou o rosto público das políticas públicas anticovid nos Estados Unidos, deixou o cargo em dezembro do ano passado.
Outra peça do quebra-cabeça surgiu em janeiro deste ano. Foi quando uma investigação do Departamento de Saúde do governo norte-americano concluiu que, “apesar de identificar os riscos potenciais associados à pesquisa realizada com os recursos repassados à EcoHealth, o NIH não monitorou efetivamente nem tomou medidas oportunas para atender à conformidade da EcoHealth com alguns requisitos”. Dentre os problemas identificados, está a “falta de capacidade da EcoHealth em obter documentação científica do Instituto de Virologia de Wuhan”.
A responsabilidade da China
A conclusão de que o vírus surgiu de um laboratório leva a uma questão tão importante quanto perturbadora: como responsabilizar as autoridades chinesas por terem sido negligentes e depois tentado acobertar as origens de uma pandemia que matou 14,9 milhões de pessoas, direta ou indiretamente, apenas entre 2020 e 2021, além de ter causado pesadas restrições às liberdades de viajar, estudar e até mesmo ir à igreja? Qualquer que seja a resposta, as implicações geopolíticas não são pequenas.
Mas a verdade é que, mesmo com indícios mais sólidos a favor da teoria do vazamento laboratorial, é provável que nunca seja possível confirmar essa hipótese por inteiro. O laboratório de Wuhan é uma caixa-preta protegida a todo custo pelo regime comunista, e o mercado de peixes de Wuhan foi desintegrado muito antes que qualquer investigador estrangeiro pudesse colocar os pés lá.
Já em agosto de 2021, um relatório do grupo de trabalho do governo norte-americano constatou que “a cooperação com a China muito provavelmente seria necessária para uma avaliação conclusiva das origens da covid-19”, antes de notar que “Pequim continua a impedir a investigação global, a resistir ao compartilhamento de informações e a culpar outros países”.
Mesmo que de forma gradual, a maior aceitação da tese de que houve um vazamento laboratorial tem trazido alívio tardio a pesquisadores que haviam enfatizado essa possibilidade desde o início. Uma delas é a bióloga Alina Chan, canadense de origem chinesa, que trabalha no MIT e é coautora de um livro em que investiga as origens da pandemia.
Depois da notícia de que o Departamento de Energia mudou de posição sobre a origem do vírus, ela pediu uma investigação completa sobre o assunto e deu uma declaração que vale tanto para parte da comunidade científica quanto para os líderes governamentais: “Para os cientistas, é muito mais fácil condenar vendedores de animais selvagens do que denunciar publicamente lideranças poderosas em suas áreas e dizer que o arriscado trabalho com vírus que eles financiaram e apoiaram pode ter causado milhões de mortes”.
Revista Oeste
PUBLICADAEMhttp://rota2014.blogspot.com/2023/03/mais-uma-peca-do-quebra-cabeca-da.html
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