Flavio Morgenstern, Revista Oeste
Psicoterapeuta afirma que doença pode ter diagnóstico difícil — e explica sua relação com a pandemia da covid-19 e com os problemas da vida moderna
Uma outra pandemia, mais oculta, silenciosa e sem tanto alarde midiático, tem destruído muitas vidas: a pandemia de depressão. Se a Organização Mundial de Saúde a coloca em quarto lugar entre as doenças mais comuns do mundo, as perspectivas são que a depressão se torne a campeã absoluta já em 2030.
Além de ser uma doença “solitária”, sem grande divulgação e que favorece o comportamento antissocial, a depressão ainda é misteriosa, mesmo para especialistas em saúde mental.
A Brasil Paralelo lançou o documentário A Fantástica Fábrica da Sanidade, que trata sobre essa pandemia oculta. Um dos especialistas entrevistados foi o médico Bruno Lamoglia. Pós-graduado em psiquiatria, psicoterapeuta e professor, Lamoglia jogou algumas luzes sobre a doença — inclusive sua relação com a pandemia da covid-19 e os problemas da vida moderna.
É costume dizer que, na terapia, se tenta encontrar o que o paciente escondeu de si próprio. No documentário A Fantástica Fábrica da Sanidade, da Brasil Paralelo, o senhor comenta sobre “símbolos” a serem trabalhados na clínica para desvendar casos de depressão. Poderia explicar melhor?
Há diversas formas de utilizar símbolos durante a concepção de um diagnóstico, que representam um conjunto dos sintomas do paciente, ou seja, as formas de agir, sintomas físicos, como expressam suas emoções e pensamentos etc. Isso ajudaria tanto o profissional (psiquiatra) quanto o paciente a entender seu sofrimento com apenas uma palavra (depressão). Uma floresta é nitidamente viva, enquanto o deserto passa uma visão oposta. O corpo possui sinais e sintomas condizentes com a maneira daquele indivíduo pensar e agir. Num quadro depressivo, percebemos alterações em diversas áreas da vida do paciente que podem ir além dos critérios diagnósticos, tais como cores da roupa, fácies de sofrimento, lentidão de movimentos, volume e velocidade do discurso diminuídos, discurso pessimista, higiene, tipos de amizade, de profissão, de doenças etc. Quando pensamos em símbolos a serem “trabalhados”, a ideia do deprimido é retirá-lo do “centro de si”, do “fundo do abismo”, do foco de toda sua atenção, e fornecer as armas necessárias para que haja ações no mundo, reorientando seu foco de atenção. A própria medicação é uma excelente ferramenta para retirar o paciente da poderosa inércia em que se encontra.
O psiquiatra Theodore Dalrymple costuma afirmar que as pessoas dizem estar deprimidas quando estão, na verdade, tristes. Como separar uma tristeza, ainda que profunda, de uma depressão?
A tristeza é uma emoção fisiológica. Pessoas saudáveis e felizes irão ficar tristes diversas vezes. No entanto, é uma emoção, e, por natureza, há tendência de ser delimitada em tempo, pontual, além de responder a estímulos de contraponto (fatos alegres seriam bálsamos eficientes). Mesmo que a tristeza perdure, é fácil fazer um nexo causal da tristeza com o ocorrido. Já a depressão acontece de forma intensa, duradoura, frequentemente é incapacitante, sem aparente nexo causal, com nítidos impactos físicos (sono, vitalidade, dores, apetite etc.). A depressão pouco responde a estímulos de alegria, e, até ao contrário, o sujeito pode se sentir ainda pior por experimentar profunda apatia e/ou tristeza diante do que outrora provocava prazer.
“Uma das muitas explicações para a depressão é que vivemos mal. Ou seja, temos padrões comportamentais insalubres, insanos, não condizentes com uma vida digna”
As turbulências políticas e a pandemia de covid-19 são mesmo responsáveis por tantos casos de depressão?
A covid em si causou inflamação em diversos tecidos do corpo, incluindo o cérebro. Atualmente evidenciamos a depressão como uma doença inflamatória. Somente neste argumento, teríamos a associação entre covid e depressão. Mas o cenário pareceu apocalíptico para muitos. O tema “morte” toca no cerne de qualquer ser vivo, e em muitos foi um estopim para forte crise existencial. Outros pontos ligaram o interruptor da depressão (e da ansiedade): a solidão do isolamento, a ruptura da rotina, a diminuição da atividade física, o convívio intenso com familiares conflituosos. A instabilidade política gera incerteza. Esta incerteza traz a ideia de um futuro obscuro. A esperança é reprimida e reina o medo. Para os que já possuem a carga genética tendendo à depressão, esses fatores contribuíram para a abertura de um quadro. Outros apenas experimentaram uma tristeza intensa.
A atriz Linda Hamilton, famosa por interpretar Sarah Connor no filme Exterminador do Futuro 2, alega ter sido diagnosticada como deprimida, quando sofria de transtorno bipolar. Como diferenciar?
A bipolaridade do tipo 2 é um desafio diagnóstico. Não há crises maníacas (euforia intensa), e sim de hipomania (um pouco eufóricas). É quase imperceptível. Os pacientes usam esse momento como referência, utilizam-se de frases como “nesta época eu estava bem”, “esse era eu de verdade”… Mas existem diferenças às quais o psiquiatra treinado deve estar atento: a resposta para os antidepressivos é ruim, aumentam a irritabilidade do paciente, perdem efeito rapidamente, levam a quadros eufóricos. O paciente bipolar tipo 2 possui maior tendência ao uso de substâncias psicotrópicas (lícitas ou ilícitas). São quadros arrastados, longos. O tempo médio para chegar ao diagnóstico é de 13 anos (desde a abertura do quadro). O tratamento é diferente: são usados estabilizadores de humor ao invés de antidepressivos. A vida desse paciente pode ser de grande sofrimento até que se ache o diagnóstico correto.
As pessoas podem estar caminhando para a depressão sem nem sequer perceber?
A depressão é multifatorial e ainda de causa pouco conhecida. Há avanços nítidos nos exames de neuroimagem, nos biomarcadores (achados em exames de sangue) e sobretudo na genética. Mas sabemos que, além do físico, possuímos uma psique que é ainda mais complexa em seus mistérios. Uma das muitas explicações para a depressão é que vivemos mal. Ou seja, temos padrões comportamentais insalubres, insanos, não condizentes com uma vida digna. A vida urbana, sedentária, solitária, em ambientes escuros no dia e iluminados à noite, com uma alimentação no mínimo duvidosos. É extremamente nova à nossa espécie e poderia estar por si só provocando um dano. Ora, qualquer dano precisaria aparecer em forma de sintoma. A depressão seria a dor da alma ou ao menos a dor da psique exigindo alterações urgentes na vida. Seria a correspondência da dor ao quebrar um osso ou pisar em um prego. Resguardo é necessário até que se reforme a maneira de existir.
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