, por Roberto Motta
Qual é o futuro de um cidadão ou de um trabalhador que é convencido — através de um livro didático — que não há diferença entre dizer ou escrever “os carro” ou “os carros”?
Uma confusão generalizada foi estabelecida em muitas áreas da moderna vida social. Isso é evidente; basta um olhar rápido sobre as manchetes de hoje — sobre as manchetes de um dia qualquer, de qualquer ano.
Certezas absolutas tornaram-se incertas; direitos que eram considerados indiscutíveis e garantidos em todo o Ocidente, há mais de 200 anos, hoje têm pouca serventia ou garantia; a verdade de ontem é a mentira de hoje e será sobreposta pela narrativa de amanhã. Nas palavras de um famoso (e infame) autodenominado economista e pensador — que é parcialmente responsável pelo atual estado de coisas — “tudo o que é sólido se desmancha no ar”.
Quem disse isso foi Karl Marx, mas não seria correto atribuir-lhe exclusividade na autoria da confusão atual. Na verdade, esse é um problema com múltiplas faces, como se fosse um cruzamento do cão Cérbero, de várias cabeças, que na mitologia grega guardava o inferno, com a letal Esfinge, da mesma mitologia: das várias cabeças desse cruzamento monstruoso vem o desafio: decifra-me ou te devoro.
Há muitos caminhos para enfrentar esse enigma.
Podemos começar pela linguagem.
Podemos começar pela história do livro escrito para produzir analfabetos.
É inacreditável, mas é verdade.
Essa é uma história relevante para entendermos quanto avançamos na direção da desorganização do que costumávamos chamar de civilização ocidental (alguém pode me informar se ainda é permitido usar esse termo?)
É uma história importante neste momento em que se debate, mais uma vez, o ensino estatal brasileiro (e estamos sempre debatendo o ensino estatal brasileiro, sempre usando o termo inadequado “educação pública”).
Uma sociedade roubada do significado e da precisão da sua linguagem é uma sociedade roubada de uma ferramenta essencial para o reconhecimento e a preservação de sua liberdade
A história foi essa:
Em 2011, o Ministério da Educação e Cultura do Governo da República Federativa do Brasil aprovou o livro didático Por Uma Vida Melhor, para o ensino da língua portuguesa nas escolas públicas.
O texto do livro — um livro didático — incluía a frase: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado“. Não, não houve falha da revisão na frase anterior. Ela foi escrita assim mesmo; a frase foi escrita de forma errada de propósito.
O livro explicava que se trata da “variedade popular” de expressão. E adicionava: “Na variedade popular, basta que a palavra ‘os‘ esteja no plural”.
Como em: as casa.
As pessoa.
As ideia.
Os pobre.
As desgraça.
Prestem atenção à orientação que os autores do livro transmitem aos seus leitores, aos estudantes — e escrevo isso refreando um enorme impulso de colocar as palavras “autores” e “livro” entre aspas. Um exemplo dessa orientação pode ser localizado na página 15:
“Mas eu posso falar ‘os livro’?”.
A resposta dos autores é direta: “Claro que pode. Mas, com uma ressalva, ‘dependendo da situação, a pessoa corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico’”.
O MEC, na época, informou que o livro foi aprovado porque “estimula a formação de cidadãos capazes de usar a língua com flexibilidade”.
Segundo disse o MEC, “é preciso se livrar do mito de que existe apenas uma forma certa de falar, e que a escrita deve ser o espelho da fala”.
Poderíamos lembrar aqui quem presidia o Brasil em 2011, e quem era o ministro da Educação da época — mas isso significaria roubar um leitor de uma pequena surpresa, facilmente obtida por uma busca na internet.
Inúmeros livros já foram escritos sobre a importância da linguagem, e o papel fundamental que ela representa na formação e na manutenção de regimes políticos totalitários. Praticamente todo regime político totalitário da era moderna envolveu alto grau de manipulação da linguagem.
No excelente Linguagem e Silêncio, George Steiner fala sobre a relação entre linguagem e autoritarismo, perguntando:
“Quais são as relações da linguagem com as falsidades assassinas que ela foi obrigada a articular e consagrar em certos regimes totalitários? Ou com a grande carga de vulgaridade, imprecisão e ganância que ela é obrigada a carregar em uma democracia baseada no consumo de massa?”.
Uma sociedade roubada do significado e da precisão da sua linguagem é uma sociedade roubada de uma ferramenta essencial para o reconhecimento e a preservação de sua liberdade — começando pela própria liberdade de expressão. Como diz André Assi Barreto, em Arrume Seu Quarto: Um Guia Para Entender Jordan Peterson:
“A liberdade de expressão é corolário da liberdade de consciência, que é garantidora de todas as demais liberdades”.
Qual é o futuro de um cidadão, de um trabalhador ou de um eleitor que é convencido — através de um livro didático do Estado — que não há diferença entre dizer ou escrever “os carro” ou “os carros”? A resposta quem dá é Gustavo Bertoche, no seu excelente prefácio para As Ferramentas Perdidas da Aprendizagem: “Ter seus afetos sequestrados pela propaganda, as suas opiniões direcionadas pela mídia, as suas emoções incendiadas por palavras de ordem”.
O destino dessa vítima de destruição intelectual em massa é ter sua vida guiada pelo que vê “nas novela” de TV, nos reality shows e na fala fácil, despudorada e apenas marginalmente mais estruturada de políticos populistas e patrimonialistas.
Como conclui Gustavo Bertoche:
“Assim, a pessoa iletrada age em função de gatilhos linguísticos: os chavões, as frases de efeito, as ‘lacrações’. Esses gatilhos condicionam-lhe a vontade, envenenam-lhe o pensamento e estabelecem limites restritos para o seu julgamento crítico. O problema é que não podemos perceber a nossa própria insuficiência: no campo da interpretação, não somos capazes de perceber onde estão as nossas próprias deficiências, porque somente as enxergamos quando por fim as superamos. Há quem repita palavras de ordem e frases feitas — e de acordo com elas paute as suas ações — sem suspeitar, por um único instante, da sua transmutação num autômato político, num boneco de ventríloquo cujo discurso, sequestrado por ideologias, determina o seu juízo e as suas decisões”.
Revista Oeste
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