Jornalista Andrade Junior

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Ao vencedor, as batatas!  

   Katia Magalhães

Nota do editor: Este artigo que hoje (01/12) me cai nas mãos, é adequada síntese do desequilíbrio imposto à disputa pelo segundo turno da eleição presidencial.

        Na falta de bizarrices no Brasil, onde tudo se desenrola dentro da mais perfeita ordem democrática, terei de encher essas linhas com notícias de um país remoto, que parece viver uma convulsão sistêmica às vésperas de uma eleição supostamente influenciada, de forma direta, pela cúpula judiciária local. Ossos do ofício de alguém como eu, que se dispõe a entreter você, caro leitor, ainda que mediante o relato de eventos de uma terra desconhecida, e um tanto pavorosos aos olhos de todos nós brasileiros, entusiastas aguerridos da democracia e das liberdades.

No país popularmente apelidado de Togaquistão, mas cuja identidade oficial junto à comunidade das nações consta como República Democrática dos Togados (RDT), disputam a presidência o atual ocupante do cargo e um ex-líder muito popular por lá, condenado em todas as instâncias por crimes graves contra o erário, mas cujas condenações foram anuladas pela suprema corte do país, por terem sido supostamente proferidas por um magistrado de outro estado federativo que não aquele onde deveriam ter sido examinadas as ações. Anuladas as sentenças sem a absolvição do tal líder, este participa da disputa em condições anômalas, devido à não-revisão, no mérito, de suas condenações, o que o impede, pelo menos em tese, de alardear um histórico de idoneidade. Como é penoso tentar entender as peculiaridades desses estrangeiros, e reportá-las aos nossos conterrâneos, tão radicalmente avessos à corrupção e aos desmandos…

Mas esse é apenas o início de um emaranhado de estranhezas. De algum tempo para cá, o partido desse líder ex-condenado decidiu bater incessantemente às portas da justiça eleitoral local, pleiteando a retirada de circulação dos mais variados conteúdos desfavoráveis à referida liderança, e, pasme, não cansa de obter vitórias sucessivas, graças a medidas judiciais que, na prática, representam uma mordaça a todos aqueles que ousem remexer em fatos inconvenientes da biografia do polêmico líder. E sim, caro leitor, trata-se de censura, prática banida para sempre entre nós, desde o final da era militar, e que só posso designar como tal exatamente por viver em um país livre e não na jurisdição da RDT, onde a leitura dessas singelas páginas seria vedada antes mesmo de sua publicação. Aguarde só o relato de fatos bem recentes, dos quais tomei ciência por algumas vozes dissidentes do establishment de lá, e você será o primeiro a constatar que não há exagero nas minhas palavras.

A semana já começou com a proibição, a pedido do partido do líder ex-condenado, de lançamento de um vídeo de uma certa produtora independente, cujo teor discutia várias hipóteses possíveis para a suposta tentativa de assassinato do atual presidente do país. Embora os autores tenham acentuado a natureza jornalística da peça produzida em torno de especulações, sem qualquer conclusão, e tenham até se disposto a quebrar o ineditismo da obra para exibi-la em juízo, todos os argumentos foram vãos, e os togados mantiveram a censura.

Bem pitoresco foi o voto, em plenário, de uma magistrada assolada por um dilema moral diante da iminência de uma censura, extinta, segundo ela, desde o final do regime fardado que também dominou aquele país por algumas décadas. Nas palavras da juíza, apesar da jurisprudência consolidada no supremo tribunal local sobre o impedimento de qualquer forma de censura, medidas repressivas podem ser tomadas como veneno ou remédio, donde se depreende que, no entender da magistrada estrangeira, a diferença entre aniquilar e salvar a sociedade reside no grau de cuidado aplicado, palavra, aliás, enfatizada por reiteradas vezes no voto. No parecer da togada, embora a censura não seja admissível em qualquer hipótese, naquele caso específico, a proibição de exibição do conteúdo até o dia subsequente ao da eleição é medida necessária à garantia da lisura na corrida, sendo, portanto, constitucional apenas até a referida data.

Curiosa a jurisprudência formada nessa terra estrangeira, cujos togados começam a criar a figura de uma constitucionalidade “provisória”, entendendo que, independentemente de seu teor, uma medida possa ou não ser compatível com a constituição, desde que restrita a um determinado período. Realmente, a lei maior daquele país deve diferir em essência da nossa, pois confesso jamais ter deparado, por aqui, com uma decisão análoga à da magistrada. Aliás, pelo que ouço, a juíza em questão parece ser uma alma muito piedosa e afeita a hábitos rígidos, de modo que talvez a pobre senhora, após votar, tenha perdido o sono e passado a noite em penitência por ter imposto a sua censura ma non troppo.

Logo no dia seguinte, e mais uma vez mediante requerimento da sigla da liderança oposicionista, foi uma emissora que se viu impedida de usar termos como “ladrão”, “corrupto”, “ex-condenado” e análogos em referência ao tal líder que, em um passado próximo, foi efetivamente condenado, por todos os tribunais do país, diante das evidências de que havia surrupiado dinheiro público e incorrido em corrupção. Para nós, brasileiros, tão precisos no uso da linguagem e aferrados à clareza dos conceitos, é inconcebível uma proibição que vede o emprego de substantivos e adjetivos indicativos do que a pessoa em questão de fato praticou, e de sua qualificação a partir daí. Porém, quem somos nós para julgarmos esquisitices e malabarismos linguísticos do povo de uma terra tão distante?

Igualmente inusitado foi o corte, ainda a pedido do partido do ex-condenado, de um depoimento trazido em uma peça de campanha eleitoral do atual presidente. No trecho censurado, aparecia um ex-ministro da suprema corte e da justiça eleitoral do país, afirmando apenas que o tal líder popular jamais havia sido absolvido. E não foi mesmo! Ora, se o tivesse sido, teria circulado mundo afora sua sentença de absolvição, e eu, interessada que sou nos principais assuntos judiciários do referido país, teria lido o documento em todas as suas vírgulas. Talvez poucos povos apresentem tamanha dificuldade em encarar a realidade quanto esses estrangeiros, sobretudo quando os fatos envolvem figuras quase míticas, que os locais se esmeram em venerar ou execrar.

Para coroar a semana bem tumultuada naquela terra árida e inóspita, bem diferente do nosso país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, a cúpula da justiça eleitoral local ainda emitiu uma resolução que autoriza o tribunal superior a proceder à pronta retirada de perfis, contas ou canais em mídias sociais, nas hipóteses de produção sistemática de desinformação. Assim, de uma única solapada, sem definir o conceito de “desinformação” ou sequer mencionar a necessidade de pedido de instauração de inquéritos por autoridades policiais ou do MP, a corte atribui a seus membros um indevido poder de polícia, lançando seus jurisdicionados na incerteza sobre quem será o próximo alvo dos togados eleitorais, e por qual motivo.

Porém, não prosseguirei, aqui, em comentários tão desairosos sobre a aludida República, e nem assumirei o risco de ser o estopim de uma eventual crise diplomática com uma nação estrangeira, cujos vícios e as bizarrices são amparados em sua soberania nacional. Afinal, se a população de lá estivesse tão insatisfeita diante da desordem generalizada, manifestaria seu repúdio em coro, e se mobilizaria para providenciar a remoção dos mais altos membros de seu estamento estatal! Pelo menos, assim creio eu, cidadã livre de um país onde funcionários são enxergados como servidores que têm de prestar contas de suas atitudes e de seus gastos junto ao povo que os sustenta.

Em terras onde falta liberdade, abundam narrativas fabulescas e receitas de bolo. Contudo, nada mais frágil e provisório que o próprio fenômeno do poder, sobretudo em regimes autocráticos, onde são os tiranos os que correm os maiores riscos, cercados pelo terror paranoico de destituições legítimas, golpes ou demais formas de substituição. Nada como um dia após o outro.

*A autora é advogada e MDA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ.

*Texto publicado originalmente no site Navegos, em https://www.navegos.com.br/ao-vencedor-as-batatas/





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