Jornalista Andrade Junior

sábado, 21 de novembro de 2020

"Dinastias políticas",

 por Selma Santa Cruz

As famílias que mandam no país


Como costuma ocorrer a cada eleição, a última foi celebrada como prova da consolidação da nossa democracia. Apesar da pandemia, 113 milhões de brasileiros compareceram às urnas e elegeram um número recorde de representantes de minorias. Porém, a realidade por trás das aparências se revela bem diferente. A soma de abstenções, votos nulos e brancos foi a maior das últimas décadas — no Rio de Janeiro, chegou a 39%, porcentagem superior à obtida pelo candidato mais votado, um indicador bastante eloquente da aversão dos eleitores aos políticos disponíveis para escolha. A suposta renovação também é de fato ilusória, já que, a despeito de algumas caras novas, a maior parte dos eleitos carrega velhos e conhecidos sobrenomes. Os dos inúmeros clãs que se mantêm no poder há décadas, dominam todas as esferas e instâncias de governo, e transformaram a política brasileira num lucrativo negócio de família.

Seus herdeiros estão em todos os partidos, tanto à direita quanto à esquerda, e em todas as regiões, escancarando a antiga tradição brasileira das dinastias políticas e feudos eleitorais, que se perpetua praticamente desde as capitanias hereditárias. Um fenômeno estrutural que transforma a democracia em farsa e impede a modernização do país, por estimular o nepotismo e o patrimonialismo. Duas práticas que, além de fomentar a desigualdade, impossibilitam uma gestão pública eficiente, visto que grande parte dos cargos administrativos termina sendo preenchida, por meio desse mecanismo, por laços de compadrio.

“A lógica da política brasileira só pode ser entendida pela dinâmica dessas famílias, cujos interesses são determinantes em praticamente todas as instituições da República”, resume um dos principais estudiosos do tema, o cientista político Ricardo de Oliveira, professor da Universidade do Paraná. Nesse sentido, o resultado do primeiro turno das eleições municipais apenas confirma a regra. Um dos exemplos mais emblemáticos é o dos candidatos que disputarão a prefeitura do Recife no segundo turno, ambos descendentes do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, líder de esquerda exilado pelo regime militar e morto há 15 anos.

De um lado, concorre um bisneto, o deputado federal do PSB João Campos, filho do falecido ex-governador e ex-candidato à Presidência Eduardo Campos. Do outro, uma neta de Arraes, a petista Marília, que vem a ser prima em segundo grau do adversário e representa uma ala inimiga da família. A briga, por sinal, já explodiu em público algumas vezes, com tons de melodrama de novela da TV Globo. Na última delas, a avó de João, Ana Arraes, ex-deputada e ministra do Tribunal de Contas da União (TCU), deu um pito pela imprensa no neto, que havia batido boca com um tio durante debate na Comissão de Educação da Câmara. “Não admito grosseria, você está desrespeitando sua avó”, fulminou a matriarca.

Em São Paulo, o prefeito Bruno Covas é outro que recorre ao cacife político do avô falecido, o ex-governador e prócer tucano Mário Covas, a fim de continuar no poder. Já o casal de ex-presidiários Anthony e Rosa Garotinho, caciques da política fluminense, apostou na descendência para tentar conservar seu feudo eleitoral. Impossibilitados de concorrer devido a condenações por corrupção, os ex-governadores conseguiram participar da eleição por meio dos filhos Wladimir e Clarissa Garotinho — o primeiro, candidato à prefeitura de Campos; a segunda, à do Rio de Janeiro.

Esse padrão familiar repetiu-se por todo o país. Em Minas Gerais, como acontece há dois séculos, não faltaram representantes da mais antiga dinastia política brasileira, os Bonifácio Andrada, da linhagem do “Patriarca da Independência” e ministro de dom Pedro I, José Bonifácio de Andrada e Silva. Desta vez, membros da sexta geração do clã competiram por duas prefeituras. Da mesma forma, marcou presença no Ceará, como de praxe, o clã dos Ferreira Gomes, capitaneado pelo ex-governador e presidenciável Ciro Gomes, figurino acabado de coronel do século 21.


A influência das oligarquias familiares no Congresso é ainda mais assustadora


Não se trata, como se vê, de exceções pontuais, ou resquícios do passado em grotões atrasados do Norte e Nordeste. A praga das famílias políticas contamina todo o corpo da política, numa teia intrincada de alianças e interesses que define os destinos do país. Por trás do verniz aparente de modernização das últimas décadas, as oligarquias controlam desde a Presidência da República, comandada pelos Bolsonaro, até as prefeituras dos menores municípios brasileiros, passando, é claro, pelo Parlamento.

Pois é justamente no Congresso que se pode conferir a expressão mais flagrante desse arcaísmo político. O Senado está nas mãos de um representante do clã Alcolumbre, do Amapá: o presidente da Casa, Davi Alcolumbre, tem um irmão como suplente e tenta emplacar outro na prefeitura de Macapá. Na Câmara, quem manda, por sua vez, são os Maia, antiga estirpe política com ramificações no Rio Grande do Norte e no Rio de Janeiro, onde o pai do deputado Rodrigo Maia, o ex-prefeito Cesar Maia, acaba de se reeleger vereador pela quarta vez.

O pior é que essa “bancada dos parentes” vem crescendo a cada legislatura. Um estudo da Universidade de Brasília sobre os deputados federais eleitos entre 2000 e 2010 apontou um crescimento de 10% na quantidade de herdeiros, que representaram naquele ano 46%, quase a metade do total. Outro levantamento, da organização Transparência Brasil, detectou que o índice subiu para 49% quatro anos depois, o mais alto em relação às quatro eleições anteriores. E uma pesquisa divulgada em 2017 pelo site Congresso em Foco revelou que nada menos do que dois terços dos parlamentares naquele ano — 62% da Câmara e mais de 73% do Senado — haviam sido eleitos por oligarquias familiares.

Leve-se em conta que esses números não incluem os parentes suplentes de senadores, outra categoria da tradição nepotista. Além do caso de Alcolumbre, há pelo menos mais quatro situações desse tipo, incluindo a do filho do senador Chico Rodrigues, de Roraima, flagrado recentemente com dinheiro na cueca pela Polícia Federal. Vale considerar ainda que tais levantamentos não são totalmente completos ou confiáveis, já que nem todos os laços de parentesco podem ser facilmente identificados pelos sobrenomes, o que exigiria um mapeamento genealógico apurado.

Boa parte deles, é certo, acaba se tornando conhecida com o tempo. Como, por exemplo, além das famílias já citadas, os Barbalho do Pará, os Neves de Minas Gerais, os Sarney do Maranhão, os Calheiros e Collor de Mello de Alagoas, os Cunha Lima da Paraíba, os Coelho e Vasconcelos de Pernambuco, e os Requião do Paraná. Com frequência, contudo, políticos oriundos de linhagens poderosas adotam, por uma razão ou outra, sobrenomes diferentes. Poucos sabem, por exemplo, que Rafael Greca, eleito pela terceira vez para a prefeitura de Curitiba, descende de uma das linhagens políticas mais antigas do Paraná: os Macedo, que elegeram ainda no Império o primeiro prefeito da capital paranaense.

Há também as situações em que as famílias garantem sua continuidade no poder por meio de aliados, como ocorreu este ano em Salvador, onde o atual prefeito, ACM Neto — herdeiro dos outrora poderosos mandatários Antônio Carlos Magalhães e Luís Eduardo Magalhães —, optou por carrear o cacife de votos da família para seu vice, Bruno Reis, já que se prepara para disputar o governo do Estado daqui a dois anos.

Não é raro, ainda, que essas transferências de capital político terminem por dar origem a novos núcleos de poder — caso do ex-senador e ex-ministro Edison Lobão, uma dessas raposas que se revezam em diferentes cargos políticos desde a redemocratização, na década de 1980, sempre aumentando o patrimônio pessoal. Antigo aliado dos Sarney, Lobão instalou na política, entre outros parentes, a mulher e o filho, o ex-deputado Marcio, conhecido como Lobinho, e denunciado por corrupção junto com o pai, no ano passado, pela Lava Jato.


Laços de parentesco passam à frente da meritocracia na hora da divisão do butim


“As oligarquias brasileiras têm uma capacidade surpreendente de adaptação e sobrevivência”, analisa outro experiente cientista político, o consultor e professor aposentado da Universidade de Brasília Paulo Kramer. “Elas conseguem cooptar para seus esquemas de perpetuação quaisquer novas forças e lideranças que surjam.” É o que se viu em relação ao PT, tão crítico das velhas dinastias quando estava na oposição, mas que, ao chegar ao poder, germinou rapidamente seus próprios clãs, como os Vianna, no Acre, e os Tatto, em São Paulo.

Há quem ressalve que essa deformidade não seria uma característica exclusiva do Brasil, já que famílias políticas podem ser encontradas em quase todos os países. Mas estudos comparativos deixam claro que a magnitude do fenômeno por aqui não tem comparação no mundo — nem mesmo na Índia, sociedade de castas por excelência. Também não parece válido o argumento de que certas profissões predominam em algumas famílias pela tendência de os filhos seguirem a carreira dos pais.  As dinastias políticas locais asseguram a sua perpetuação graças a estratagemas específicos e com vistas à defesa de interesses econômicos.

Um desses mecanismos é o próprio sistema político-eleitoral, continuamente aprimorado para favorecer os donos do poder. A começar pela proibição de candidaturas independentes e pela autonomia excessiva outorgada aos partidos, a pretexto de garantir sua independência, desde a Constituição de 1988. A distorção foi acentuada por reformas eleitorais mais recentes e sobretudo pelo Fundo Eleitoral, que nesta eleição canalizou para os cofres dos partidos escandalosos R$ 2 bilhões da receita de impostos. Como a alocação dessa dinheirama fica a critério dos líderes partidários, e os partidos são praticamente agremiações de fachada, já que dominados por famílias, não surpreende que os laços de parentesco passem à frente da meritocracia na hora da divisão do butim.

Implodir esse modelo arcaico para promover uma efetiva renovação política e ampliar, de fato, a representatividade democrática requereria, como fica claro, uma reforma política abrangente. Com mudanças na legislação para modernizar os partidos e impedir práticas de nepotismo e patrimonialismo, pela imposição de controles, maior fiscalização e transparência, como ocorre nas democracias avançadas. Porém, como esperar que reformas sejam promovidas justamente por aqueles que se beneficiam do atual sistema?

O longo e dificultoso processo de aprovação de emendas à Constituição também não favorece a mudança, como mostram as várias iniciativas do tipo paralisadas nos escaninhos do Congresso. Para completar, a velha política sabe que pode contar com o apoio sempre prestimoso do Judiciário, outra instituição do poder igualmente controlada, desde o Império, e em todas as instâncias, por suas próprias dinastias. As quais, não raramente, têm laços de parentesco ou interesse com as oligarquias.

Enquanto nada mudar, a política, que deveria atrair os quadros mais qualificados e íntegros do país, continuará à mercê da mediocridade e da mesmice. Como nas monarquias do passado, quando os laços de sangue da aristocracia valiam mais do que talento e méritos individuais. A atual “nobreza” brasileira tem o quilate dos clãs que estão aí.

Revista Oeste













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