Jornalista Andrade Junior

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Índex com obras proibidas é questão de tempo

 Gabriel Wilhelms


O Brasil está oficialmente na lista de países que banem livros. Atendendo a pedido do MPF, que recorreu de decisão do TRF-4, Flávio Dino, ministro do STF, determinou a retirada de circulação de quatro livros de Direito que teriam conteúdo misógino e homofóbico. A ideia de fundo parece ser, como tem sido o padrão nesses casos, que aqueles que eventualmente venham a ler as referidas obras possam se converter em machistas e homofóbicos após se deparar com tal conteúdo. Não, isso não é dito diretamente, mas é a essência por trás de qualquer banimento dessa espécie, afinal, um livro só seria capaz de atentar contra a “dignidade humana”, ou coisa que o valha, se tivesse por si só o poder de converter as pessoas que os leem no que elas não são. Por óbvio, não se enxergam a crítica e mesmo o ostracismo mercadológico dos autores como remédios eficazez contra o preconceito, fazendo-se mister a censura. Os defensores da decisão de Dino dirão que não se trata de censura, pois ele permitiu que os livros voltassem a ser publicados, desde que com as partes polêmicas retiradas. Isso vai ao encontro do espírito destes nobres “editores da sociedade”. O que faríamos sem eles, não é mesmo? Por óbvio, não dispomos de capacidade cognitiva para ler uma obra, saber reconhecer eventuais conteúdos preconceituosos e rejeitá-los.


Não é de surpreender que o Ministério Público seja fiador da coisa, haja vista, por exemplo, a perseguição que tem promovido a humoristas como Léo Lins. Em um dos processos que responde, Léo Lins chegou a ter seus canais suspensos e foi obrigado a retirar de circulação um show que teria conteúdo “preconceituoso”. Em uma decisão que merece um lugar especial na latrina da história do direito, foi disponibilizada uma lista de temas (grande parte envolvendo minorias) sobre os quais ele estaria proibido de fazer piadas.


No mesmo espírito de produção de listas de coisas a serem abolidas, o TSE usou nosso dinheiro para lançar uma cartilha identitarista em 2022, com palavras e termos que deveriam ser banidos do nosso vocabulário por supostamente serem “racistas”. A lista inclui termos como denegrir, criado-mudo, esclarecer, humor negro, lista negra, mercado negro e até mesmo nossa adorada nega maluca. Não se trata, “ainda”, de uma lista de palavras proibidas, mas palavras que deveríamos abandonar “voluntariamente”. Quanto tempo para partirmos do voluntarismo para a obrigação e do “deslize” para a cadeia?


O que conecta esses casos é essa ideia de que as pessoas devem ser tratadas como incapazes de entender as coisas em seu devido contexto, que advém do lobby identitarista e a gigantesca permeabilidade institucional a estas pautas no Brasil: nunca o Judiciário foi terreno tão fértil para os devaneios identitários.


Aos que leem as passagens a serem suprimidas dos livros citados no primeiro parágrafo e pretendem concordar com Dino, eu pergunto: qual o limite? As cidades do Rio de Janeiro e Porto Alegre, por iniciativa de suas câmaras municipais, já proibiram a comercialização do Mein Kampf (o livro do Hitler), em seus territórios. É uma decisão estúpida e contraproducente. A venda do Mein Kampf não é mais incentivo ao nazismo do que a venda d’O Capital seria ao marxismo. Aliás, nem a comercialização da Bíblia pode ser entendida necessariamente como uma apologia ao cristianismo: muito do meu ateísmo foi consolidado lendo, vejam só, a Bíblia.


Em 1644, John Milton já sabia, muito melhor do que os pseudoprogressistas de 2014, que uma ampla liberdade de publicação de livros era uma oportunidade para o confronto de ideias, boas ou más, e para o prevalecimento da verdade sobre a mentira. Podemos acrescer que é também uma oportunidade para o prevalecimento da dignidade humana sobre o preconceito — e não há, afinal, uma profusão de obras com o fim de denunciar o preconceito em todas as suas formas muito mais significativa do que a meia dúzia de obras contemporâneas homofóbicas ou misóginas que podemos encontrar por aí? Quem pensa que alguém se tornará nazista por ler o Mein Kampf padece de falta de coerência. Na verdade, o mais frequente é que tal leitura se preste ao objetivo exatamente oposto: conhecer o pensamento de Hitler em sua base e a maluquice que ele representa, na maior parte dos casos, só reforçará o antinazismo. Aliás, como que se pretende que alguém possa escrever sobre o pensamento de Hitler se não tiver acesso a ele? Devemos estar fadados a depender tão somente da interpretação de terceiros? Isso vale para todo autor, por mais extremistas que sejam suas ideias. É o óbvio do óbvio.


Mas vivemos tempos em que figuras como John Milton, Voltaire e John Stuart Mill são negligenciadas, em um movimento que delata não só a pequenez moral e intelectual desses “iluminados” contemporâneos, mas também a ingratidão histórica daqueles que até ontem gozavam de uma liberdade de expressão que era em grande parte o produto das ideias de grandes iluministas, apóstolos da liberdade, liberdade que hoje pisoteiam por medos irracionais — como o de que as pessoas se tornarão homofóbicas, misóginas ou nazistas por causa de livros, como se o volume de obras com conteúdo exatamente oposto ao qual estamos expostos não fosse esmagadoramente maior, servindo como contrapeso muito mais do que suficiente.


Listas de termos a serem banidos, de piadas proibidas, livros a serem reescritos ou sumariamente proscritos. Tudo o mais constante, é questão de tempo para que os “editores da sociedade” produzam um índex com obras a serem proibidas, que pode incluir desde shows de humor, passando por livros e culminando até mesmo em produções cinematográficas. Continuem as coisas a se encaminhar dessa forma, e é questão de tempo para que a mera posse, física ou virtual, de certos materiais, que, na prática, serão considerados “subversivos”, seja objeto de multas exorbitantes e até mesmo prisão. E os “progressistas” que certa vez aprenderam que um dia houve um índex da igreja católica, compilando obras consideradas “heréticas”, estarão na primeira fila aplaudindo a proscrição de obras sob o beneplácito do identitarismo. Mudou-se apenas o tipo de heresia.


Fontes:


https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/11/01/dino-manda-tirar-de-circulacao-4-livros-juridicos-com-conteudo-homofobico-e-misogino.ghtml


https://www.uol.com.br/splash/noticias/2023/05/18/leo-lins-piadas-perturbador.htm


https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2023/06/sancionada-lei-que-proibe-comercializacao-e-circulacao-do-livro-mein-kampf-de-hitler-em-porto-alegre-cliemcjm6002n01567kyvddwt.html


https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/01/07/rio-sanciona-lei-que-proibe-venda-publicacao-e-circulacao-de-livro-de-adolf-hitler.ghtml





















publicadaemhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/index-com-obras-proibidas-e-questao-de-tempo/

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