Gabriel Wilhelms
Em reiteradas ocasiões, o presidente Lula deu acenos às entidades sindicais sinalizando com um possível retorno do famigerado imposto sindical – ou coisa que o valha. O argumento é que o governo permitiria a “negociação” entre sindicatos e trabalhadores, não tendo mais a contribuição caráter de imposto. Seja como for, o tema, impopular como é, tinha sido deixado meio de lado pelo governo à espera de ventos mais favoráveis. Talvez o governo Lula não precise se preocupar com o desgaste, pois tudo aponta que o STF formará maioria para tornar compulsório o pagamento de contribuições sindicais, mesmo por trabalhadores não sindicalizados.
A proposta em discussão estabelece que os trabalhadores que não tiverem interesse em pagar “devem manifestar sua oposição ao pagamento”. É o rabo abanando o cachorro. Não surpreende essa nova pérola da corte que muda seus entendimentos como quem troca de roupa e que vive a se aviltar em sua tentativa de se elevar à essência de uma casa legislativa.
Digam o que disserem sobre a possibilidade de se “opor” ao pagamento, certo como a luz do dia é que, se a tese for mantida pelo STF, um assalto ao bolso do trabalhador será patrocinado pela suprema corte. O tal direito de se opor ou virará letra morta, ou trará desnecessárias dores de cabeça ao trabalhador celetista. Digo isso com conhecimento de causa e, para dar substância ao que digo, farei algo que não costumo fazer por aqui: relatar um caso pessoal.
Lá pelos idos de 2017, trabalhando em uma empresa do setor comercial, fui negativamente surpreendido em um determinado mês ao receber meu contracheque e perceber que o equivalente a um dia de trabalho me havia sido descontado. Não, não se tratava do imposto sindical, ainda vigente nessa época, mas de um penduricalho sindical que recebia muitos nomes: contribuição sindical/confederativa/assistencial. De pronto, fui pesquisar para saber a natureza do desconto e se tinha alguma base legal, descobrindo muito rapidamente que os valores só podiam ser descontados de trabalhadores não sindicalizados com a sua expressa autorização. O desconto, portanto, era indevido.
A possibilidade de reaver o que me havia sido roubado, para chamar as coisas pelo nome, era nula, mas restava a questão do que fazer para evitar a ocorrência de novos descontos (roubos). A recomendação que encontrei foi produzir uma carta a ser entregue ao sindicato manifestando minha “oposição” ao pagamento das contribuições. Lá fui eu, trabalhador honesto, perder meu precioso tempo para ir pessoalmente ao sindicato em questão, munido da carta onde constavam todas as jurisprudências que explicitamente proibiam descontos sem minha anuência, incluindo a Súmula Vinculante 40 do STF (prestes a ser nulificada), que diz de forma muito clara: “É inconstitucional a instituição, por acordo, convenção coletiva ou sentença normativa, de contribuições que se imponham compulsoriamente a empregados da categoria não sindicalizados.“
A coisa era muito simples, as provas de que os descontos eram ilegais estavam todas ali reunidas, mas o presidente do sindicato, muito embora tenha lido a carta na minha frente, se recusou a recebe-la. Mais do que isso, me informou que o procedimento a ser adotado seria, às vésperas de cada um dos descontos, que sempre totalizariam quatro no período de um ano, levar a carta de oposição ao sindicato. Ou seja, para além do infame imposto sindical, um roubo ainda existente (revogado meses depois no âmbito da reforma trabalhista do governo Temer) e operacionalizado pelo Estado brasileiro, quatro descontos adicionais, todos equivalentes a um dia de trabalho, seriam realizados, em completo desacordo com a lei vigente, e a única forma de evitar isso seria, em quatro diferentes ocasiões, que se repetiriam anualmente, o trabalhador precisar se ausentar de seu trabalho e ir ao sindicato, não bastando fazer uma única comunicação de oposição com efeito perpétuo.
A coisa piora: na tentativa de me dissuadir, o sindicalista me disse que “Isso (carta de oposição), retira vários direitos”. Sem entrar no mérito de que direitos ele falava, obviamente ele não seria capaz de me apresentar qual artigo da legislação trabalhista vigente ou da Constituição Federal que autorizasse tratamento diferenciado a trabalhadores celetistas de acordo com o fato de aceitarem, ou não, serem explorados pelo sindicato. Será que me recusando a consentir com o roubo eu perderia minhas férias ou meu décimo terceiro, por exemplo? Claro que o líder sindical sabia muito bem que seu raciocínio era uma piada, mas o cinismo falava mais alto. De fato, ele pretendia que seu sindicato fosse hierarquicamente superior à lei, o que fica claro quando argumentou que “o acordo coletivo suplanta a lei”. A despeito das retóricas pró-CLT, sabemos que essa sempre foi uma demanda de muito tempo dos sindicatos: fazer sua própria lei e a impor a todos os trabalhadores, sindicalizados ou não, com um apelo pseudodemocrático ao acordo coletivo. “Democráticos” como são, tentavam impor sua vontade na marra.
Como eu não me dissuadia e insistia, principalmente na Súmula Vinculante 40, da corte maior do país, ouvi a réplica: “nós conhecemos a súmula”. Confessavam, portanto, que estavam cientes, antes mesmo de eu apresentar minha carta, de que seus descontos (roubos) eram ilegais, mas, sem ruborizar, diziam na minha cara que não aceitariam minha oposição e continuariam a me roubar trimestralmente.
Nem o Estado seria capaz de ser tão cínico no trato com o cidadão, pois, em que pese o desgosto que sintamos com o fisco do nosso país, ao menos os impostos tem previsão em lei e podem por ela ser modificados. Em que pese, também, a falta de transparência com o dinheiro público, ilustrada por maquinações como o Orçamento Secreto, isso nem se compara à inexistente transparência dos sindicatos. Na ocasião, cheguei a procurar, em vão, por alguma prestação de contas da entidade que estava me roubando. Descumpriam a lei, tentavam chantagear o trabalhador, se recusavam a interromper o roubo e não desperdiçavam seu tempo em tentar dar alguma, ainda que insignificante, publicidade ao que faziam com o suado dinheiro do trabalhador. Ainda estavam frescas na minha memória as imagens da CUT e demais entidades sindicais lotando ônibus para dar corpo às manifestações contra o impeachment da Dilma.
Voltando ao relato, como o sindicato se mostrou intratável, a forma que encontrei para cessar os descontos (roubos) foi a) enviar uma carta registrada para o sindicato, comunicando minha oposição, de modo a ter uma prova de que essa oposição foi comunicada, b) engrossar o tom com o escritório de contabilidade da empresa dizendo que, em hipótese nenhuma, admitiria outro desconto do gênero no meu contracheque. Resolvi o problema, mas não sem muita dor de cabeça, perda de tempo e tendo que lidar com uma burocracia injustificável.
Agora o STF se move para alterar seu próprio entendimento (nada de novo por aqui), viabilizando a velha demanda dos sindicatos, em detrimento do trabalhador. Dizem que quem não quiser pagar poderá “se opor”. Ora, meu relato demonstra — e nada aponta para que meu caso tenha sido exceção, já que essa sempre foi prática corrente de muitos sindicatos — de forma clara o que vai acontecer se a mudança for feita. Se, mesmo não podendo realizar os descontos de trabalhadores não sindicalizados, sindicatos ainda assim o faziam e colocavam toda uma série de óbices para viabilizar a oposição do trabalhador, como imaginar que farão diferente quando estes descontos passarem a ser legalizados? Se o acordo coletivo será a lei maior, como não ver como inelutável a conclusão de que este será elaborado com óbices dos mais ridículos para que o trabalhador possa fazer valer sua oposição?
Se a suprema corte oficializar (e patrocinar) o assalto, sabemos exatamente o que irá ocorrer. Parte dos trabalhadores celetistas — creio que uma minoria — de fato brigarão, enfrentarão a burocracia imposta a eles e farão valer sua oposição. Outros tantos se fatigarão com os obstáculos, ou simplesmente não poderão se ausentar do trabalho (caso lhes seja imposta a condição de ir pessoalmente ao sindicato), e engolirão o roubo como um acinte a mais que precisam engolir para ter o direito de colocar comida na mesa. Há ainda os que encontrarão um sindicato intratável, como eu encontrei, e terão que, ou, entrar em rota de confronto com a própria empresa e/ou contabilidade, com todos os dissabores que isso pode gerar, ou, temendo esses dissabores, também optar por engolir o acinte. Por fim, podemos aguardar uma maior judicialização e aumento de litígios trabalhistas motivados por isso.
De uma forma ou de outra, o assalto trará seus frutos e irá forrar o caixa de sindicatos — combalidos com o fim do imposto sindical —, já que o número de trabalhadores que acabarão “contribuindo”, ainda que contra sua vontade, irá aumentar substancialmente. Essa, a propósito, é a intenção abertamente pronunciada da mudança. Em seu voto pró-assalto, o ministro Roberto Barroso cometeu o seguinte: “Caso mantido o entendimento de que a contribuição assistencial também não pode ser cobrada dos trabalhadores não filiados, o financiamento da atividade sindical será prejudicado de maneira severa. Há, portanto, um risco significativo de enfraquecimento do sistema sindical”.
Ora, na supracitada Súmula Vinculante 40 (e é vinculante pois obriga os demais tribunais a segui-la em suas decisões sobre o tema), diz-se de forma muito clara que a cobrança de não sindicalizados é inconstitucional. Não houve nenhuma aprovação de emenda constitucional sobre o tema, logo, se era inconstitucional antes, pela lógica, continua sendo; mas claro, o STF não é mais uma corte constitucional. É, para todos os efeitos, uma casa legislativa não eleita. Já que os digníssimos ministros pensam que o sistema sindical está enfraquecido, usam a constitucionalidade como desculpa para legislar e implodir um pilar fundamental da Reforma Trabalhista de 2017, esta sim elaborada por quem tinha voto popular. O mesmo Barroso já tentou “legalizar” o aborto votando um habeas corpus, então, o que esperar? Se a intenção não fosse financiar sindicatos de forma coercitiva e se contemplassem como séria o “direito de oposição”, por que fazer qualquer mudança? Os trabalhadores não sindicalizados não se encontram impedidos de contribuir, caso queiram. Quiçá, o governo Lula tem gastado energia desnecessária para aumentar sua base no Congresso, quando pode muito bem contar com togados dispostos a entrar em brigas que ele mesmo prefere deixar adormecidas e aprovar políticas de seu interesse.
Se estão os ministros sinceramente preocupados com o enfraquecimento financeiro dos sindicatos, porque não perguntam aos líderes sindicais que esforços eles têm feito para convencer os trabalhadores de suas respectivas categorias a contribuírem? De que forma têm exposto seus serviços e dado publicidade ao uso do dinheiro? O que sei é que, mesmo antes ou depois de ter sido roubado por um sindicato, nunca fui contatado por absolutamente nenhum sindicalista. Nunca recebi qualquer material que tentasse explicar sua serventia. Nunca tive acesso a nada que possa ser chamado de transparência. Tampouco conheço alguém que já tenha tido. Isso não é por acaso. Os sindicatos não estão interessados em depender do voluntarismo e da livre associação, coisa que de praxe detestam, mas sim em exercer uma coerção escorada e amparada pelo Estado e inflar o caixa com dinheiro usurpado de quem de fato trabalha e não pode se dar ao luxo de encontrar favores de embecados que se julgam deuses do Olimpo.
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PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/a-volta-do-assalto-sindical/
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