questiona Alex Fiuza de Mello
O maior mérito de sua obra, assim posto, reside naquilo que o reputado crítico literário Russel Kirk (seu conterrâneo) denominou de “interseção do temporal com o atemporal” – ou o vislumbre da “eternidade” no seio do tempo –, na intenção de remarcar o empenho do autor de A Terra Desolada em tematizar a dimensão transcendental de certas ocorrências transversalmente presentes na história cultural e política dos povos, independentemente das formas variantes de sua manifestação, expressas nas mentalidades de cada época.
Dentre os inúmeros enredos introduzidos, sob essa ótica, por Eliot, encontra-se um, particularmente instigante, publicado em 1934, no corpo de seu longo (e memorável) poema Choruses from 'The Rock', dirigido a seus contemporâneos e às gerações futuras, em cujos versos lança um alerta para o drama civilizatório que – segundo sua visão – representava a perda de certos valores éticos e morais na dialética da vida social hodierna, sintetizado na célebre indagação (com temperos de provocação e de extrema preocupação):
– “Where is the Life we have lost in living? Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information?” (“Onde está a Vida que perdemos vivendo? Onde está a sabedoria que perdemos para o conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos para a informação”?)
“Vida”, aqui, representa o sentido último (transcendente) da existência; a solidariedade e o amor recíproco como parâmetro de sociabilidade; as motivações mais nobres à ação humana; a crença na utopia do humanismo libertador – diluídas no individualismo, no imediatismo e no mecanicismo da dinâmica social materialista e hedonista.
“Sabedoria” envolve a capacidade de discernimento, de seleção e calibragem da melhor escolha (em cada contexto e circunstância) em vista da felicidade humana – subsumida ao mero pragmatismo instrumental (destituído de valor) do conhecimento técnico e científico, não raramente de manuseio e destinação desvirtuados em seus fins.
“Conhecimento”, por fim, é a explicação ou compreensão da conexão de sentido (relações de causa-efeito) entre coisas e fenômenos, enquanto a “informação” é apenas a notícia (mais ou menos fundamentada) das ocorrências de interesse, desprovida, contudo, de qualquer domínio sobre as razões e os porquês dos acontecimentos.
Nessa hierarquia “eliotiana” ao reverso, de sinalização de empobrecimento civilizatório, parece ter sobrado, ao final – depois de tantos séculos de conquistas –, tão somente a “sociedade da informação” – sem o lastro partilhado do conhecimento (reduzido à superficialidade instrumental do “dado” e do “bit”) e horizontalmente padronizada em seus conteúdos de mensagem (por vezes falseados), alheia aos propósitos finalísticos e às consequências “espirituais” de tantas descobertas e inovações.
Na moldura desse quadro desalentador (e ameaçador!), eis que vão desmoronando, progressivamente, os pilares de sustentação da modernidade ocidental, dentre os quais aquele do “contrato social”, lapidado no modelo da república democrática e seus valores mais caros: a liberdade (de organização e expressão), a igualdade (de direitos e de oportunidades) e a fraternidade (entre indivíduos da mesma espécie).
A política, expressão máxima da “arte” de condução e organização da vida em coletividade, há muito parece ter perdido o sentido mais nobre do republicanismo (o bem comum) e da democracia (a vontade da maioria), capturada pelo oportunismo e pelo corporativismo de ladinos agentes “públicos”, alçados ao poder de mando (e ali mantidos) por mecanismos programados e azeitados em fraudes, corrupção, trapaças e ludibrio, sob o controle de um sistema degenerado e envilecido de “representação” – o dos partidos políticos –, que se auto referenciou como fim em si mesmo.
Desde então, é o poder pelo poder o mote escamoteado de toda a pantomima, ensaiada e apresentada no picadeiro dos palanques e telas como se fosse espetáculo roteirizado por fictícios “projetos de sociedade”, com o condão de iludir a plateia fazendo-a acreditar que essa é, “de fato”, a “verdadeira” e “única” motivação de toda a encenação – ou a causa primeira e derradeira de todo “esforço” de representação pelos “contorcionistas” de plantão.
Sim, o oportunismo, o cinismo e a desfaçatez acabaram por substituir, no frenesi dos tempos, os valores mais fundamentais da sonhada “sociedade mais justa, igualitária e feliz”. Ao fim e ao cabo, a “república democrática” foi permutada pelo império disfarçado (e putrefeito) da plutocracia claptocrática, instalada nas diversas engrenagens e instâncias do Estado e da sociedade civil – sem dó, nem piedade.
O que era “fim” (a sociedade, o bem comum) transformou-se em “meio”; e o que era “meio” (a organização política, o partido, o poder) metamorfoseou-se em “fim” – configurando-se, nessa assustadora inversão, o ápice do paroxismo “civilizador”.
Não se trata mais de “direita” ou de “esquerda”; de “conservadorismo” ou “progressismo”; de “liberalismo” ou “socialismo” – hoje, “antônimos” eivados de absoluta obsolescência semântica e sociológica. Pois de ambos os “lados”, nasceram e floresceram – como comprova a história – ditaduras e injustiças; regimes totalitários e opressão; organizações criminosas e devassidão; máfias estelionatárias e perversão – revelando suas inconfessáveis similitudes nas situações tangentes de maior extremismo.
O crime e a loucura não são “obras” da ideologia. A ideologia em si é que é o crime e a loucura – porque falsa sedução, ilusão!
A civilização contemporânea, ainda traspassada pelo fetiche da ideologia, empobrecida de valores humanistas e universais, sinaliza a todo instante não ser capaz de superar as próprias armadilhas que encadeou ao apostar na Razão como paradigma por excelência da “verdade” e da “felicidade” – e não no Amor.
Crentes na própria “divindade”, os modernos “messias”, sem qualquer caráter e sem um Deus imanente além de suas próprias alucinações, desfigurados em suas hipócritas e enlouquecidas irresponsabilidades, conduzem a humanidade, a passos lentos ou por saltos anchos, ao limiar da “gaiola de ferro”, prevista por Max Weber há cem anos atrás, com grades robustas e desmesuradas de insuportável (e kafkiana) “racionalidade burocrática” – só que agora sem portas e sem janelas.
Sim, muito mais que ideologias; muito mais que “lados”; muito mais que “partidos” (que se reduzem, como indicado na própria designação, às suas “partes”), o que carece a política, hoje em dia, para que ascenda ao patamar da Política (com “P” maiúsculo), é de caráter, antes de tudo; de valores republicanos; de Homens (com “H” maiúsculo) que se dediquem ao e se imolem pelo bem coletivo, sobrepondo-o àqueles particulares (mesmo os mais legítimos) – restaurada, em consequência, a utopia perdida e um sentido mais humanitário para a existência.
Atualíssimo, portanto, permanece o alerta profético de T. S. Eliot., que aplicado e traduzido, no ensejo, diretamente ao campo da política, poderia ser resumido nas seguintes, intransferíveis e incômodas perguntas:
– Onde está a utopia que perdemos para a ideologia? Onde está a república que perdemos para o corporativismo e a corrupção? Onde está o caráter que perdemos para a hipocrisia?
A humanidade está cansada de ignóbeis “políticos de carreira” – e demais oportunistas de plantão. O que se necessita é de Homens transparentes e probos, da estatura de estadistas, capazes de ressuscitar a esperança pelas atitudes, pelo exemplo e pelo caráter. Afinal, a política, com “P” maiúsculo (assim deveria ser!), é sinônimo de serviço – e não de usurpação.
Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).
Jornal da Cidade
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