por Dagomir Marquezi
A ameaça da covid serviu para camuflar o vazio de quem foi criado numa redoma emocional de privilégios e justificativas rasas
Oparanaense Mário era o tipo de pessoa que viajava todos os fins de semana para percorrer trilhas ou passear em alguma praia. Estava sempre pronto a rechear a mochila e cair na estrada. Até que veio a pandemia de covid-19.
Apavorado com o que via na TV, Mário se trancou no apartamento. Por quase um ano. Amigos e parentes traziam comida e remédios e deixavam os pacotes do lado de fora. Quando partiam, Mário colocava a máscara, abria cuidadosamente a porta, empunhando a garrafinha de álcool como uma arma. Antes de levar as encomendas para dentro do apartamento, borrifava cada embalagem, e cada produto. Quando abria as janelas, procurava não respirar muito fundo. Um ano depois de se trancar, pegou covid — a qual, por sua vez, se revelou uma gripe chata. Mas Mário ainda não teve coragem de voltar a suas trilhas.
Mário é um nome fictício que representa muitos casos reais. Afinal, além daquela bolinha vermelha cheia de farpas conhecida como Sars-CoV-2, outra pandemia se alastrou pelo Brasil e pelo mundo: um surto de pânico que em muitos casos se revelou tão perigoso e prejudicial quanto a própria covid. A hashtag #ficaemcasa, a campanha de terror de boa parte da mídia, a indecente exploração política da doença, os relatos (verdadeiros ou não) que se espalhavam nas redes sociais pariram um monstro. Quem escapou da covid quase morreu de medo.
O psiquiatra Giovani Missio ficou particularmente interessado pelo fenômeno do isolamento. Observando seus pacientes, percebeu que todas as questões de ordem emocional — transtornos de estresse pós-traumático, de ansiedade generalizada, do pânico, hipocondria, transtorno obsessivo-compulsivo, depressão — pioraram muito com o isolamento forçado por prefeitos e governadores querendo “salvar vidas”.
“Se considerarmos ainda que apenas uma em cada nove pessoas com problemas de saúde emocional busca atendimento”, declarou o doutor Missio a Oeste, “poderemos concluir que existe uma quantidade enorme de pessoas sofrendo mais com as consequências do isolamento do que diretamente com a pandemia.” Situações surpreendentes começaram a surgir no seu consultório. “Me marcou o caso de um casal de idosos, sem nenhuma história prévia pessoal ou familiar de problema emocional e que passou a apresentar sintomas graves de depressão, após 90 dias de total isolamento, no início da pandemia. Houve uma dificuldade muito maior que a esperada em conseguir uma melhora com o tratamento, dado que eles mantinham o isolamento absoluto, sem contato com nenhum conhecido, vizinho ou familiar. Outra paciente, que já estava bem, com dois anos sem precisar de tratamento, voltou a apresentar um quadro de transtorno do pânico depois de oito semanas de home office e isolamento social”.
Um caso exemplar desse clima de histeria ocorreu na redação do Jornal Nacional, na Rede Globo. Em 9 de julho a apresentadora Renata Vasconcellos tossiu no estúdio. Foi imediatamente mandada para casa. Era uma “forte gripe”, declarou Renata. Uma semana depois, ela ligou para o âncora e editor William Bonner avisando que estava pronta para voltar. E, na ligação, tossiu de novo.
“Não pode”, declarou Bonner a jornalistas. “O resfriado não passou totalmente. A gente tem um protocolo aqui segundo o qual, enquanto tiver sintoma do resfriado, da gripe, o que for, você não volta. Você pode passar para alguém.” A partir de agora, aparentemente, quem soltar um mísero espirro na redação do Jornal Nacional poderá ser imediatamente isolado por uma equipe de descontaminação e mandado em carro lacrado para casa.
O Brasil parece ter sido especialmente atingido por esse pânico. Um ano atrás uma equipe da Universidade Federal do Paraná participou de uma pesquisa internacional sobre o grau de medo provocado pela covid-19. Concluiu-se que 53% dos 7.430 brasileiros entrevistados revelavam “alto nível de medo”. Como comparação, o estudo mostrou que esse “alto nível de medo” tinha alcançado 22,7% dos pesquisados em Cuba e apenas 16,6% na Bielorrússia.
Algumas pessoas passaram a desenvolver um tipo de culto inconsciente à covid-19
No Brasil, a parcela etária mais afetada estava entre os 18 e os 29 anos, assustados com a possibilidade da morte prematura e de infectarem os pais. O estudo registrou que, quando pensavam em covid-19, a grande maioria dos entrevistados relatava que sentia “medo, desconforto, ansiedade e sensação de morte”. Outros, em menor número, desenvolviam reações psicossomáticas — “suor nas mãos, taquicardia e insônia”.
Ninguém pode negar que toda a experiência da covid-19 foi e é assustadora. É normal que causasse muito medo. Mas existiram outros fatores que potencializaram a pandemia de pavor e se alimentaram dele. O medo é, como sabemos, uma arma fundamental para qualquer tirania.
A psicóloga Adriana de Araújo, autora de O Segredo para Vencer o Medo, garante que a sensação em si pode ser muito útil. “O medo é um sentimento natural, quando está em proporção adequada dentro de nós, e com isso consegue nos proteger”, diz Adriana. Mas, quando foge ao controle, pode nos prejudicar de duas maneiras importantes: 1) impedindo-nos de “fazer uma leitura saudável da vida e dos fatos” e 2) “privando-nos profundamente da capacidade de ação e tomada de escolhas”.
Uma parcela mais elitista da população foi além do simples medo. Algumas pessoas passaram a desenvolver um tipo de culto inconsciente à covid-19. Foram apelidadas de “coronalovers” nas redes sociais. A pandemia serviu para que projetassem alguns sonhos ocultos e revelassem suas reais condições psicológicas.
1) Imaturidade — A geração “floco de neve” está assumindo seu papel na sociedade, o de se esconder debaixo da cama e esperar a chuva passar. O sociólogo britânico Frank Furedi, autor de A Cultura do Medo, define muito bem a situação: “Vivemos numa cultura em que o medo está sempre no ar. Somos avisados a todo momento: não seja um herói. Não se permite mais que crianças saiam de casa para brincar. Toda alegria e aventura que existe em brincar fora de casa, onde as crianças começam a aprender sobre suas forças e fraquezas e interagir umas com as outras, já não é possível sem a supervisão de adultos. Que tipo de mensagem estamos passando aos jovens quando eles imaginam que qualquer pessoa acima dos 17 ou 18 anos é uma ameaça em potencial à sua vida?”. Para essa turma snow flake, a pandemia se tornou uma capa para a falta de coragem e de vontade. A ameaça da covid serviu para camuflar o vazio de quem foi criado nessa redoma emocional de privilégios e justificativas rasas. Mas a grande maioria dos jovens brasileiros teve de frequentar ônibus lotados, rezando para não perder o emprego. Para esses, o fantasma da covid ficou de um tamanho mais próximo ao real.
2) Ideologia — Coronalovers, em geral, definem-se “de esquerda”. E a esquerda, especialmente a brasileira, imagina o socialismo como um regime no qual ninguém precisa trabalhar, pois o Estado dá tudo aquilo de que a gente precisa. É a imaginária fábrica estatal de leite e mel que nunca acabam, alimentada pela magia das boas intenções. Mas o Brasil real continua capitalista. E o capitalismo só cresce e distribui riqueza na insegurança do risco e do esforço individual. Prossegue Frank Furedi: “‘Risco’ se tornou sinônimo de perigo. Em outros tempos, as pessoas se arriscavam, sorriam e comemoravam ter-se arriscado, como uma maneira de ganhar maturidade. Hoje, arriscar-se é quase sempre associado a um ato de irresponsabilidade”. A pandemia despertou essa fantasia insustentável — a de um país inteiro em casa, de pijamão, assistindo a filmes no streaming, ganhando ajuda emergencial ou salário em troca de nada, só se levantando do sofá para gritar na janela “Bolsonaro genocida” nos momentos combinados pelo Instagram. É uma fantasia frágil, parte de uma estratégia política tosca que poderá enfrentar momentos difíceis quando a pandemia estiver sob controle.
A covid-19 continua solta, é perigosa, e as medidas básicas para que seja controlada devem continuar sendo levadas a sério. É uma doença que pode matar ou deixar sequelas graves. Mas sentir pavor paralisante de um vírus justificava-se na miséria abjeta de 1350, durante a peste negra (que também se originou na China e durou quatro anos). Agora o medo não pode ter o mesmo tamanho. Temos o que não havia na Idade Média: ambulâncias, respiradores, antibióticos, comunicação instantânea, redes de médicos e hospitais, máscaras cirúrgicas, laboratórios, anestésicos, equipamentos para avaliação clínica. Mortes por covid ocorrem, como também ocorrem em acidentes, nos crimes e nas doenças ainda sem cura. Mas não temos mais cadáveres em decomposição empilhados no meio da rua ou fome generalizada como nos tempos medievais. No conforto do século 21, esse apego exagerado ao medo não mais se justifica.
Não se trata aqui de enviar adolescentes para lutar contra a máquina nazista na 2ª Guerra. Ou de arriscar a vida combatendo um surto de ebola no coração da África. Ou de se alistar na primeira onda de colonização de Marte. Contra a covid-19, nossas lutas e vitórias serão bem mais simples: voltar a abraçar nossos amigos e parentes, comer um pastel na feira, torcer por nosso time num estádio de futebol, dançar numa festa. Para que essas coisas voltem a acontecer um dia, temos de nos vacinar contra o medo antes mesmo de vencer o vírus.
Dagomir Marquezi, Revista Oeste
PUBLICADAEMhttp://rota2014.blogspot.com/2021/07/a-doenca-do-medo-por-dagomir-marquezi.html
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