Gazeta do Povo
A democracia morre na escuridão, diz o lema de um jornal. As liberdades, no entanto, frequentemente perecem em plena luz do dia. Esse pode ser o caso na Venezuela, onde uma recente decisão judicial coloca em risco um último vestígio de imprensa livre no Estado socialista em colapso.
"A suprema corte da Venezuela determinou o pagamento de indenização de US$ 13 milhões ao alto funcionário do partido socialista Diosdado Cabello em um caso de difamação contra um jornal, mas o advogado do jornal disse no sábado que o veículo de comunicação não tinha condições de pagar", relata a Reuters.
Cabello está atrás apenas do ditador Nicolás Maduro na liderança do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). O líder do Partido processou o jornal El Nacional em 2015 depois da publicação de um artigo que detalhava alegações de que autoridades americanas haviam aberto uma investigação sobre Cabello por suspeita de tráfico de drogas. Cabello negou a alegação e as acusações que se seguiram.
"Implacável" diante da opressão
As dificuldades econômicas da Venezuela têm sido bem documentadas, mas as liberdades civis receberam menos atenção. Como esperado, a situação não é boa.
Em um relatório de 2020, a Anistia Internacional registrou uma miríade de abusos - incluindo tortura, execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias e julgamentos injustos, bem como o uso da força para a repressão de dissidência, da liberdade de associação e da liberdade de expressão.
Ainda assim - ao contrário do que ocorre em Cuba, seu primo socialista - alguns meios de comunicação independentes conseguiram sobreviver à virada da Venezuela para o autoritarismo. Um deles foi El Nacional, o maior jornal independente do país. (Em 2013, o jornal tinha uma tiragem diária de 120.000 exemplares. Hoje, as estimativas apontam para cerca de 20.000.)
As raízes ideológicas do El Nacional são descritas como esquerdistas. No entanto, em face das atrocidades de Maduro, o jornal fez algo extraordinário: denunciou os abusos. Isso rendeu elogios globais ao El Nacional.
"Ao publicar histórias de brutalidade e corrupção oficial, o maior jornal independente deste país… ameaçou os poderosos da Venezuela e defendeu os humildes", relatou o Washington Post em 2018. "O El Nacional permaneceu implacável, apresentando alegações de fraude eleitoral, imagens de protestos e reportagens sobre hospitais em ruínas e casos de desnutrição, produtos de uma grave crise econômica".
Os riscos dessa postura eram consideráveis. Somente em 2018, observa o Washington Post, a Venezuela removeu cinco sites de notícias da Internet. Enquanto isso, mais de três dezenas de jornais fecharam desde 2013, "quando o governo assumiu o controle da distribuição de papel para impressão e começou a contrair seletivamente a oferta".
O controle de fornecimento é apenas uma das táticas que a Venezuela usou para silenciar os críticos do Estado. Os líderes do partido também usaram tribunais alinhados a Maduro, onde funcionários do governo apresentaram acusações de difamação, incitamento e calúnia contra dezenas de meios de comunicação, levando ao fechamento de muitos. Em um período de 18 meses, 54 estações de rádio e TV foram fechadas, informou o Post.
Apesar desse clima, em 2015 os editores do El Nacional decidiram republicar um artigo de um jornal espanhol detalhando a investigação de Cabello, o que motivou o processo por difamação. O processo levou o dono do jornal, Miguel Henrique Otero, a fugir do país temendo por sua segurança.
"Uma quantia astronômica"
Hoje, o jornal se encontra diante de uma ordem judicial para pagar 237.000 petros - a moeda digital que Maduro lançou em 2018 para evitar as sanções americanas - de indenização a Cabello.
Inicialmente, a indenização era bem menor. Em maio de 2018, um tribunal de Caracas ordenou que o El Nacional pagasse a Cabello 1 bilhão de bolívares (cerca de US$ 10.000). No entanto, o advogado de Cabello entrou com uma moção para alterar a moeda da indenização para se ajustar à hiperinflação da Venezuela.
"Este é um caso claro de assédio judicial contra um dos poucos veículos independentes remanescentes na Venezuela, que conseguiu continuar fazendo reportagens contra todas as probabilidades", disse Natalie Southwick, do Comitê para a Proteção de Jornalistas.
O El Nacional, que viu sua circulação despencar mais de 80% desde 2013, parece ter pouco recurso. Juan Garanton, advogado do El Nacional, disse à Reuters que o jornal tentará fazer com que o tribunal explique como chegaram a esse número em particular. "É uma quantia astronômica", disse Garanton.
O que está claro é que o jornal não tem dinheiro para pagar a indenização. E essa é provavelmente a ideia.
O tribunal deixou claro em decisões anteriores que, se o El Nacional não pagasse a multa, "o jornal poderia ser apreendido e vendido em leilão". Este é um negócio muito melhor do que comprar o jornal de fato, o que compradores pró-Maduro supostamente tentaram fazer em 2013, de acordo com Otero.
"Eles admitiram que eram emissários de altos funcionários do governo e me disseram que o governo estava disposto a pagar pela empresa", disse Otero ao Post. Então ele recusou.
É claro que a tentativa de compra do El Nacional não aconteceu exatamente por causa do desejo de Maduro de ter um jornal. Assim como as acusações contra o jornal não são realmente sobre "difamação".
Afinal, Cabello não estava simplesmente sendo investigado por autoridades americanas por supostos crimes de drogas, como alegava o jornal. Desde então, ele foi incriminado pelas autoridades, o que qualquer tribunal razoável veria como uma prova confirmatória de que a alegação central da reportagem do El Nacional - que Cabello estava sendo investigado pelas autoridades dos EUA - estava correta.
Como a seção de Caracas do Colégio Nacional de Jornalistas da Venezuela corretamente observou, a ação contra o jornal é "mais um passo em direção à liquidação da liberdade de expressão na Venezuela". Em outras palavras, trata-se de poder e controle.
Liberdade econômica e liberdade política estão ligadas
Embora o destino do El Nacional permaneça incerto, essa batalha é um lembrete de que Milton Friedman estava certo quando observou que a liberdade política e a liberdade econômica estão inextricavelmente ligadas. Esta é uma conexão que muitas vezes não é notada.
"Acredita-se amplamente", escreveu Friedman em The New Individualist Review, "que arranjos econômicos são uma coisa e arranjos políticos outra, que qualquer tipo de arranjo econômico pode ser associado a qualquer tipo de arranjo político. Esta é a ideia subjacente a termos como 'socialismo democrático'. A tese essencial, acredito, de um novo liberal é que essa ideia é inválida, que 'socialismo democrático' é uma contradição de termos, que existe uma conexão íntima entre arranjos econômicos e arranjos políticos, e que apenas certas combinações são possíveis".
De fato, um mercado livre é um baluarte essencial contra a tirania política. "Ao se retirar a organização da atividade econômica do controle da autoridade política", escreveu Friedman em seu livro clássico Capitalismo e Liberdade, "o mercado elimina essa fonte de poder coercitivo. Ele permite que a força econômica seja um freio ao poder político, em vez de um reforço".
"Não conheço nenhum exemplo", conclui Friedman, "no tempo ou no espaço, de uma sociedade que foi marcada por uma grande medida de liberdade política e que não usou algo comparável a um mercado livre para organizar a maior parte da atividade econômica."
O economista John Marangos também explicou por que o abandono da liberdade econômica resulta no retrocesso da liberdade política.
"Em essência, as pessoas que desfrutam dos benefícios do processo de mercado questionarão e diminuirão o poder dos governos autoritários", escreveu Marangos, professor de economia e dissertação na Universidade da Macedônia. "Os indivíduos que experimentam os benefícios da liberdade por meio das relações de mercado provavelmente exigirão liberdade no processo político. O mercado e a liberdade política estão internamente ligados: um gera e sustenta o outro".
Em outras palavras, era inevitável que a adoção do socialismo pela Venezuela resultasse em um declínio da liberdade política, bem como da liberdade econômica. A única questão era quando isso aconteceria e qual seria o grau do declínio da liberdade política.
Alguns podem achar surpreendente que ainda exista uma imprensa livre na Venezuela. O fato de que ela existe é, em grande parte, um mérito do El Nacional, um jornal que permanece sem se curvar - e que ainda não foi quebrado.
©2021 FEE - Foundation for Economic Education. Publicado com permissão. Original em inglês
Por Jon Miltimore, FEE - Foundation for Economic Education.
publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2021/04/o-ultimo-grande-jornal-independente-da.html
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