Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

A Justiça Eleitoral pode criar novos ilícitos?

 Lexum


A decisão de cassação do mandato da Deputada Federal Carla Zambelli, pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), representa um marco preocupante na atuação da Justiça Eleitoral. A decisão, pelo que se vê na mídia, é aparentemente baseada na tese de que as manifestações políticas da Deputada configuraram abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação, revelando uma interpretação expansiva, artificial e perigosa da legislação eleitoral. Pelo que foi noticiado, o Tribunal não se limitou a aplicar a lei conforme seu sentido objetivo, dentro dos limites de significação do texto legal, mas criou, na prática, um novo critério para cassação de mandatos, baseado em improvisos supostamente presumidos na lei, afastando-se do que a norma efetivamente previa – no caso, o artigo 22, da Lei Complementar 64/1990: “Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político”.


Quando a Lei Complementar 64/1990 foi promulgada, o conceito de abuso de poder político estava ligado a interferências concretas na disputa eleitoral por meio do uso da estrutura estatal, como a concessão de benefícios governamentais, a distribuição de recursos públicos ou a coerção direta sobre eleitores. Da mesma forma, o uso indevido dos meios de comunicação referia-se à manipulação sistemática da mídia para beneficiar determinada candidatura de maneira desproporcional, criando um ambiente de desequilíbrio eleitoral. Não se tratou, aqui, de uma candidata fazendo uso das emissoras de rádio de sua família, para angariar votos por meio da divulgação exagerada de seu discurso. Nem de uma candidata fraudando o aplicativo de rede social, para que suas publicações fossem mais anunciadas que às dos concorrentes. Não: tratou-se de outra coisa, de pura manifestação, pela deputada, de suas opiniões – extremamente controversas, é verdade, mas lícitas em um contexto de disputa eleitoral que não se pune as imprecisões verbais sob pena de cercear o mais franco debate público.


Os conceitos legais foram construídos para punir ações objetivas, com base em critérios verificáveis e mensuráveis. O que o TRE-SP fez foi distorcer essa lógica, transformando a manifestação política de uma parlamentar, em suas próprias redes sociais da internet, em um elemento suficiente para a cassação de seu mandato, sem que houvesse comprovação de vantagem estrutural indevida ou interferência direta no processo eleitoral. Tal mudança não apenas desloca o significado original da norma, mas também abre margem para que tribunais eleitorais assumam um papel de árbitros do debate político, decidindo, caso a caso, quais opiniões e críticas são aceitáveis e quais devem ser punidas com a remoção de um representante eleito.


Ao que tudo indica, a referida interpretação viola um princípio fundamental de qualquer regime republicano: a presunção de liberdade. No Direito Eleitoral, assim como em qualquer outra esfera jurídica, a regra deve ser a liberdade, e as restrições precisam ser expressas e justificadas. Nenhum cidadão, muito menos um parlamentar eleito, pode ser punido com base em normas vagas ou interpretações arbitrárias. A Justiça Eleitoral não pode simplesmente decidir que determinados discursos políticos representam abuso de poder apenas porque considera que eles geram instabilidade. O que distingue uma democracia de um regime autoritário é justamente o fato de que as regras são claras, previsíveis e não mudam conforme a conveniência política do momento.


Parece que houve uma expansão do conceito de abuso de poder para incluir manifestações políticas, o TRE-SP concede à Justiça Eleitoral um poder discricionário ilimitado para decidir quem pode ou não permanecer no cargo. Essa abordagem não seria compatível com a separação de poderes e com a própria lógica da representação democrática. Parlamentares são escolhidos pelo povo para expressar suas opiniões e defender suas ideias – e isso inclui o direito de errar, exagerar e até ser impreciso. A resposta a declarações políticas deve vir do eleitorado, e não de tribunais eleitorais que se arrogam o direito de definir quais discursos são aceitáveis e quais não são.


Além disso, a legislação exige que o abuso de poder tenha gravidade suficiente para comprometer a normalidade e a legitimidade do pleito. No entanto, no caso de Zambelli, o TRE-SP não demonstrou concretamente – ao menos pelo que se lê na mídia – de que maneira suas declarações impactaram a disputa eleitoral ou geraram desequilíbrio na competição. A decisão parece basear-se na suposição de que suas manifestações enfraqueceram a confiança no processo eleitoral, sem apresentar provas objetivas de que isso teve efeitos reais sobre a escolha dos eleitores. Se a Justiça Eleitoral continuar expandindo o conceito de abuso de poder sem critérios objetivos, qualquer manifestação de um parlamentar poderá ser usada como fundamento para sua cassação, desde que um tribunal decida que ela comprometeu a normalidade do processo democrático. Esse tipo de critério subjetivo mina a segurança jurídica e fragiliza a própria democracia, pois desloca o poder de decisão das urnas para as cortes eleitorais.


Obviamente, a decisão do TRE-SP ainda deverá ser analisada pelas instâncias superiores, em grau de recurso, mas os sinais recentes do Judiciário indicam que há um risco concreto de que essa interpretação se consolide e amplie de maneira irreversível o poder da Justiça Eleitoral sobre o debate político. Se esse entendimento for mantido, abrirá mais um precedente no qual a liberdade de expressão de parlamentares poderá ser permanentemente sujeita ao crivo subjetivo dos tribunais, e a estabilidade dos mandatos dependerá de interpretações oportunistas da lei, e não da vontade popular. Esse avanço da interferência judicial sobre o espaço político enfraquece a separação de poderes e ameaça transformar cortes eleitorais em agentes ativos na definição dos rumos políticos do país. No entanto, ainda há tempo para que essa escalada seja contida. O risco é real, mas a reversão é possível, desde que haja reação firme daqueles que compreendem que a Justiça não pode se tornar um ator político capaz de decidir, sem respaldo claro na lei, quem pode ou não governar.


Leonardo Corrêa – Advogado, Sócio de 3C Law | Corrêa & Conforti Advogados, LL.M pela University of Pennsylvania, um dos Fundadores e Presidente da Lexum


Bruno Gimenes Di Lascio – Advogado, mestre em ciência jurídica (UENP), especialista em ciências penais (UEM) e direito tributário empresarial (PUCPR).





















publicadaemhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/politica/a-justica-eleitoral-pode-criar-novos-ilicitos/

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