Jornalista Andrade Junior

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

'A Hora da Anistia',

 Ruth Moraes e SĂ­lvio Navarro, Gazeta do Povo

Hoje o meu esposo nĂŁo volta!” Com um pequeno cartaz que estampava os dizeres “Justiça por ClezĂŁo”, Edjane Duarte da Cunha, viĂșva de Cleriston Pereira da Cunha, interrompeu a sessĂŁo da ComissĂŁo de Constituição e Justiça (CCJ) da CĂąmara dos Deputados na quarta-feira, 11. O grito de protesto, atropelado pela voz que embargou quando os olhos se encheram de lĂĄgrimas, era uma resposta Ă  manobra armada por partidos de esquerda para adiar a votação do projeto de lei que concede anistia aos presos pelo tumulto do dia 8 de janeiro de 2023, em BrasĂ­lia. Mais de 1,6 mil pessoas foram denunciadas por crimes diversos, e 227 foram condenadas a penas que chegam a 17 anos de cadeia. Se o projeto for aprovado pelo Congresso Nacional, os presos poderĂŁo voltar para casa — ou retirar a tornozeleira eletrĂŽnica. 

JĂĄ “ClezĂŁo” morreu em novembro do ano passado, aos 46 anos, depois de um infarto fulminante no pĂĄtio do presĂ­dio da Papuda. Ele nĂŁo vai voltar para casa, como disse a viĂșva aos deputados. Edjane Duarte foi com sua filha, KĂ©ssia, de 23 anos, Ă  CĂąmara nesta semana depois de ter enterrado o marido, sem tempo de se despedir — porque o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), nĂŁo atendeu Ă  recomendação da Procuradoria-Geral da RepĂșblica para tirĂĄ-lo da cela por motivos de saĂșde. “Mais famĂ­lias estĂŁo morrendo e sofrendo o que estou sofrendo”, afirmou. A fala emocionada ocorreu quando o deputado pernambucano TĂșlio GadĂȘlha (Rede) vociferava contra a ameaça que o “golpe do 8 de janeiro” representou ao paĂ­s. \

O parlamentar faz parte da nova safra da esquerda “progressista” e ficou famoso por namorar a apresentadora FĂĄtima Bernardes, da TV Globo. A cartilha parece decorada: “Essas pessoas foram presas por tentativa de golpe de Estado!”. Alguns polĂ­ticos que fazem parte da comissĂŁo, mesmo os da velha guarda da esquerda, como Chico Alencar (Psol-RJ), Patrus Ananias (PT-MG), JosĂ© GuimarĂŁes (PT-CE), irmĂŁo de JosĂ© Genoino, e o ex-cara-pintada Lindbergh Farias (PT-RJ), tĂȘm o hĂĄbito de cerrar o punho e gritar “Sem anistia!” nos microfones, e TĂșlio GadĂȘlha se sentiu encorajado. A viĂșva, entĂŁo, apontou o dedo para o deputado: “A culpa Ă© sua, Ă© da esquerda! Meu esposo hoje nĂŁo volta, e vocĂȘs estĂŁo aĂ­ com uma narrativa de golpe que nĂŁo existe. Sempre vou lutar pelo ClezĂŁo, atĂ© porque nĂŁo desejo que o senhor, deputado, sinta a dor que estou passando”. A comissĂŁo, comandada por Caroline de Toni (PL-SC), foi paralisada.

O projeto da anistia ficou para depois das eleiçÔes municipais, porque os deputados estĂŁo empenhados em eleger aliados nos seus redutos no dia 6 de outubro — sĂł 103 municĂ­pios podem ter segundo turno. Por isso, as sessĂ”es andam escassas desde agosto por falta de quĂłrum. Mas a anistia jĂĄ Ă© tratada como uma realidade nos corredores da CĂąmara. Nesta semana, o ministro Alexandre Padilha (RelaçÔes Institucionais) disse que o governo vai tentar impedir que os presos do 8 de janeiro sejam perdoados. HĂĄ dois problemas nessa ameaça: o primeiro Ă© que Padilha nĂŁo Ă© recebido sequer para um cafĂ© com a bancada do PT, e jĂĄ foi chamado de “incompetente” publicamente pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). 

O segundo diagnĂłstico Ă© aritmĂ©tico: o bloco de partidos de esquerda, liderado pelo PT com a ajuda de siglas satĂ©lites, nĂŁo tem maioria para barrar o projeto nem na CCJ, a porta de entrada, nem no plenĂĄrio. Na ponta do lĂĄpis, a esquerda tem 108 votos, podendo chegar a 130 com o socorro dos instĂĄveis PDT e PSB. 

“É lamentĂĄvel que uma questĂŁo humanitĂĄria, de direitos humanos, seja utilizada como negĂłcio. É claro que a gente jĂĄ esperava que a esquerda atacasse, mas entristece ver muitos parlamentares sem coração. E tambĂ©m parlamentares de centro, que nĂŁo defendem nada. HĂĄ quanto tempo essas pessoas estĂŁo presas injustamente? Um dia preso injustamente Ă© um absurdo e, graças a isso, as pessoas jĂĄ nĂŁo acreditam mais na Justiça no Brasil.” (JĂșlia Zanatta, PL-SC) Da comissĂŁo, o destino final serĂĄ o plenĂĄrio. Se for pautaddo num dia de Casa cheia, a aprovação Ă© garantida, porque nĂŁo Ă© necessĂĄrio o chamado quĂłrum qualificado — trĂȘs quintos dos deputados, no caso de emenda constitucional. Isso significa que a carta ficarĂĄ nas mĂŁos de Arthur Lira. 

Ele Ă© a favor ou contra a anistia? NinguĂ©m sabe, mas isso tampouco importa. Lira nunca se preocupou com nenhum tema que nĂŁo fossem as emendas parlamentares, ou seja, manter a fatia mais graĂșda do Orçamento bem vigiada. Ocorre que, conforme os deputados tĂȘm dito abertamente em entrevistas, ele trata o tema da anistia como bandeira da oposição, sobretudo do PL e de parlamentares do centrĂŁo que vĂŁo usĂĄ-la na campanha Ă  reeleição em 2026. 

Neste momento, a preocupação de Lira Ă© eleger o seu sucessor na presidĂȘncia da Casa em fevereiro para nĂŁo perder protagonismo. Ele tambĂ©m terĂĄ um duelo difĂ­cil com seu arquirrival Renan Calheiros (MDB) em Alagoas. Como o senador Ă© contra a anistia, Ă© possĂ­vel prever que Lira estarĂĄ do lado oposto do tabuleiro. No microcosmo da CĂąmara, que parece sĂł interessar para quem vive nele, o que isso significa? Eis a matemĂĄtica de Arthur Lira: o PL tem a maior bancada da CĂąmara, atualmente com 92 cadeiras. Os outros dois grandes blocos partidĂĄrios, uma sopa de letras com diversas legendas, reĂșnem trĂȘs candidatos Ă  sucessĂŁo: Hugo Motta (Republicanos-RJ), Elmar Nascimento (UB-BA) e AntĂŽnio Britto (PSDBA). Quantos votos esses blocos detĂȘm? Somados, sĂŁo 308 deputados.

É mais do que suficiente para ganhar qualquer eleição no primeiro turno. Haverá acordo para ter disputa? Provavelmente, sim, porque na reta final tudo se resolve nas miudezas da Cñmara: um cargo de direção ali, um gabinete melhor com banheiro exclusivo para o deputado que anda chateado, um ar-condicionado novo etc

O nome favorito de Lira Ă© Hugo Motta, do Republicanos — que faz parte de um dos blocos citados acima. PolĂ­tico profissional desde os 21 anos, hoje tem 34 anos e jĂĄ estĂĄ no quarto mandato. Se eleito, serĂĄ o mais jovem a comandar a Casa. É formado em medicina, mas segue a carreira da famĂ­lia: o pai Ă© prefeito de Patos, cidade do semiĂĄrido da ParaĂ­ba com 100 mil habitantes. Os avĂłs tambĂ©m foram deputados, tanto no Estado quanto em BrasĂ­lia. Quem conhece a cidade afirma que parece aqueles casos de novela, quando duas famĂ­lias do Nordeste casam os filhos, toda a linhagem vive da polĂ­tica, e eles governam a cidade por dĂ©cadas. Lira negocia colocar o projeto de lei da anistia para votação se tiver a garantia de que o PL e esses blocos votarĂŁo em peso no seu candidato. Tudo indica que vai conseguir. TambĂ©m interessa a ele empurrar essa pauta atĂ© o final do ano, para assegurar que ninguĂ©m mude de ideia na Ășltima hora. 

O projeto que avança na CĂąmara leva o nĂșmero 2.858, de autoria do ex-deputado Major Vitor Hugo (PL-GO). O texto Ă© anterior ao 8 de janeiro e foi usado como base, mas o parecer que serĂĄ votado Ă© uma colcha de retalhos. O perdĂŁo deve ser estendido atĂ© a data das eleiçÔes de 2022 e prevĂȘ a anulação de multas aplicadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como a de R$ 22 milhĂ”es ao PL. O relator Ă© Rodrigo Valadares (UB-SE). Ele reclamou abertamente do uso da anistia para a escolha do novo presidente da Casa: “EstĂŁo utilizando a vida de seres humanos como moeda de troca”, disse.

Impeachment de Moraes Se no Congresso a anistia se tornou a pauta nĂșmero 1, o assunto da vez no Senado Ă© o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, protocolado na segunda-feira, 9. Foram anexadas as assinaturas de 1,4 milhĂŁo de brasileiros. Um grupo de 152 deputados encampa a proposta, mas o nĂșmero que interessa Ă© o de senadores. Segundo o site Votos Senadores, o placar atual Ă© de 36 a favor do impeachment, 29 indecisos e 16 contrĂĄrios. O site exibe os nomes de todos eles e como o eleitor pode acionĂĄ-los pelas redes sociais, e-mail ou telefone. 

A decisĂŁo sobre a abertura do processo cabe ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que jamais deu sinal de que farĂĄ isso, a exemplo do que fez com outros 23 pedidos similares. Pelo contrĂĄrio, nesta semana ele pediu “prudĂȘncia”, dias depois de o paĂ­s assistir Ă  enorme manifestação que cobriu a Avenida Paulista no 7 de Setembro. “É muito importante que o Senado analise isso. NĂŁo temos clima para outras matĂ©rias. A sociedade cobra, e essa resposta tem que ser dada Ă  população. Chegamos no fundo do poço”, afirmou Eduardo GirĂŁo (Novo-CE), um dos signatĂĄrios do documento contra Moraes. 

Alguns juristas afirmam que hĂĄ uma brecha na Lei nÂș 1.079, de 1950, a “Lei do Impeachment“, para que a Mesa Diretora delibere sobre o caso. Argumentam que o artigo 44 da lei prevĂȘ o recebimento da denĂșncia “pela Mesa do Senado”. Em seguida, caberia ao plenĂĄrio aceitar ou nĂŁo a denĂșncia, por maioria simples — ou seja, 41 senadores a favor. O tema, contudo, Ă© complexo: seja pelo ineditismo, seja porque a prĂłpria legislação começou a ser escrita a partir da Constituição de 1946 e acabou adaptada depois a uma nova Carta — logo, nĂŁo hĂĄ referĂȘncia constitucional clara. 

O entendimento que prevalece em BrasĂ­lia Ă© o que prevĂȘ os Regimentos do Senado e da CĂąmara. Quem deu a largada a dois processos de impeachment contra presidentes da RepĂșblica — Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff — foram os presidentes da CĂąmara. Quem pode fazer o mesmo com um ministro do STF Ă© o presidente do Senado. A sociedade brasileira nĂŁo estĂĄ Ă  vontade com o cerceamento de liberdades constitucionais — estas, sim, muito bem redigidas Ă  letra da lei — nem com a censura ou a permanĂȘncia dos inquĂ©ritos ilegais conduzidos por Alexandre de Moraes O assunto foi debatido pelo prĂłprio Senado em setembro do ano passado com uma dezena de juristas. Na Ă©poca, o senador EsperidiĂŁo disse. “Em 2021, foram arquivados 32 pedidos de impeachment sobre juĂ­zes, e nenhum deles foi apreciado pelo plenĂĄrio. É uma discrepĂąncia.” 

O fato Ă© que o recado das ruas no 7 de Setembro foi claro: o tempo do lado de fora do Congresso Nacional parece correr mais rĂĄpido. A sociedade brasileira nĂŁo estĂĄ Ă  vontade com o cerceamento de liberdades constitucionais — estas, sim, muito bem redigidas Ă  letra da lei — nem com a censura ou a permanĂȘncia dos inquĂ©ritos ilegais conduzidos por Alexandre de Moraes. Mais rĂĄpido ainda corre o relĂłgio de quem estĂĄ preso injustamente depois do 8 de janeiro, Ă  espera de anistia.


Ruth Moraes e SĂ­lvio Navarro, Gazeta do Povo























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