Ruth Moraes e SĂlvio Navarro, Gazeta do Povo
Hoje o meu esposo nĂŁo volta!” Com um pequeno cartaz que estampava os dizeres “Justiça por ClezĂŁo”, Edjane Duarte da Cunha, viĂșva de Cleriston Pereira da Cunha, interrompeu a sessĂŁo da ComissĂŁo de Constituição e Justiça (CCJ) da CĂąmara dos Deputados na quarta-feira, 11. O grito de protesto, atropelado pela voz que embargou quando os olhos se encheram de lĂĄgrimas, era uma resposta Ă manobra armada por partidos de esquerda para adiar a votação do projeto de lei que concede anistia aos presos pelo tumulto do dia 8 de janeiro de 2023, em BrasĂlia. Mais de 1,6 mil pessoas foram denunciadas por crimes diversos, e 227 foram condenadas a penas que chegam a 17 anos de cadeia. Se o projeto for aprovado pelo Congresso Nacional, os presos poderĂŁo voltar para casa — ou retirar a tornozeleira eletrĂŽnica.
JĂĄ “ClezĂŁo” morreu em novembro do ano passado, aos 46 anos, depois de um infarto fulminante no pĂĄtio do presĂdio da Papuda. Ele nĂŁo vai voltar para casa, como disse a viĂșva aos deputados. Edjane Duarte foi com sua filha, KĂ©ssia, de 23 anos, Ă CĂąmara nesta semana depois de ter enterrado o marido, sem tempo de se despedir — porque o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), nĂŁo atendeu Ă recomendação da Procuradoria-Geral da RepĂșblica para tirĂĄ-lo da cela por motivos de saĂșde. “Mais famĂlias estĂŁo morrendo e sofrendo o que estou sofrendo”, afirmou. A fala emocionada ocorreu quando o deputado pernambucano TĂșlio GadĂȘlha (Rede) vociferava contra a ameaça que o “golpe do 8 de janeiro” representou ao paĂs. \
O parlamentar faz parte da nova safra da esquerda “progressista” e ficou famoso por namorar a apresentadora FĂĄtima Bernardes, da TV Globo. A cartilha parece decorada: “Essas pessoas foram presas por tentativa de golpe de Estado!”. Alguns polĂticos que fazem parte da comissĂŁo, mesmo os da velha guarda da esquerda, como Chico Alencar (Psol-RJ), Patrus Ananias (PT-MG), JosĂ© GuimarĂŁes (PT-CE), irmĂŁo de JosĂ© Genoino, e o ex-cara-pintada Lindbergh Farias (PT-RJ), tĂȘm o hĂĄbito de cerrar o punho e gritar “Sem anistia!” nos microfones, e TĂșlio GadĂȘlha se sentiu encorajado. A viĂșva, entĂŁo, apontou o dedo para o deputado: “A culpa Ă© sua, Ă© da esquerda! Meu esposo hoje nĂŁo volta, e vocĂȘs estĂŁo aĂ com uma narrativa de golpe que nĂŁo existe. Sempre vou lutar pelo ClezĂŁo, atĂ© porque nĂŁo desejo que o senhor, deputado, sinta a dor que estou passando”. A comissĂŁo, comandada por Caroline de Toni (PL-SC), foi paralisada.
O projeto da anistia ficou para depois das eleiçÔes municipais, porque os deputados estĂŁo empenhados em eleger aliados nos seus redutos no dia 6 de outubro — sĂł 103 municĂpios podem ter segundo turno. Por isso, as sessĂ”es andam escassas desde agosto por falta de quĂłrum. Mas a anistia jĂĄ Ă© tratada como uma realidade nos corredores da CĂąmara. Nesta semana, o ministro Alexandre Padilha (RelaçÔes Institucionais) disse que o governo vai tentar impedir que os presos do 8 de janeiro sejam perdoados. HĂĄ dois problemas nessa ameaça: o primeiro Ă© que Padilha nĂŁo Ă© recebido sequer para um cafĂ© com a bancada do PT, e jĂĄ foi chamado de “incompetente” publicamente pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL).
O segundo diagnóstico é aritmético: o bloco de partidos de esquerda, liderado pelo PT com a ajuda de siglas satélites, não tem maioria para barrar o projeto nem na CCJ, a porta de entrada, nem no plenårio. Na ponta do låpis, a esquerda tem 108 votos, podendo chegar a 130 com o socorro dos inståveis PDT e PSB.
“Ă lamentĂĄvel que uma questĂŁo humanitĂĄria, de direitos humanos, seja utilizada como negĂłcio. Ă claro que a gente jĂĄ esperava que a esquerda atacasse, mas entristece ver muitos parlamentares sem coração. E tambĂ©m parlamentares de centro, que nĂŁo defendem nada. HĂĄ quanto tempo essas pessoas estĂŁo presas injustamente? Um dia preso injustamente Ă© um absurdo e, graças a isso, as pessoas jĂĄ nĂŁo acreditam mais na Justiça no Brasil.” (JĂșlia Zanatta, PL-SC) Da comissĂŁo, o destino final serĂĄ o plenĂĄrio. Se for pautaddo num dia de Casa cheia, a aprovação Ă© garantida, porque nĂŁo Ă© necessĂĄrio o chamado quĂłrum qualificado — trĂȘs quintos dos deputados, no caso de emenda constitucional. Isso significa que a carta ficarĂĄ nas mĂŁos de Arthur Lira.
Ele Ă© a favor ou contra a anistia? NinguĂ©m sabe, mas isso tampouco importa. Lira nunca se preocupou com nenhum tema que nĂŁo fossem as emendas parlamentares, ou seja, manter a fatia mais graĂșda do Orçamento bem vigiada. Ocorre que, conforme os deputados tĂȘm dito abertamente em entrevistas, ele trata o tema da anistia como bandeira da oposição, sobretudo do PL e de parlamentares do centrĂŁo que vĂŁo usĂĄ-la na campanha Ă reeleição em 2026.
Neste momento, a preocupação de Lira Ă© eleger o seu sucessor na presidĂȘncia da Casa em fevereiro para nĂŁo perder protagonismo. Ele tambĂ©m terĂĄ um duelo difĂcil com seu arquirrival Renan Calheiros (MDB) em Alagoas. Como o senador Ă© contra a anistia, Ă© possĂvel prever que Lira estarĂĄ do lado oposto do tabuleiro. No microcosmo da CĂąmara, que parece sĂł interessar para quem vive nele, o que isso significa? Eis a matemĂĄtica de Arthur Lira: o PL tem a maior bancada da CĂąmara, atualmente com 92 cadeiras. Os outros dois grandes blocos partidĂĄrios, uma sopa de letras com diversas legendas, reĂșnem trĂȘs candidatos Ă sucessĂŁo: Hugo Motta (Republicanos-RJ), Elmar Nascimento (UB-BA) e AntĂŽnio Britto (PSDBA). Quantos votos esses blocos detĂȘm? Somados, sĂŁo 308 deputados.
à mais do que suficiente para ganhar qualquer eleição no primeiro turno. Haverå acordo para ter disputa? Provavelmente, sim, porque na reta final tudo se resolve nas miudezas da Cùmara: um cargo de direção ali, um gabinete melhor com banheiro exclusivo para o deputado que anda chateado, um ar-condicionado novo etc
O nome favorito de Lira Ă© Hugo Motta, do Republicanos — que faz parte de um dos blocos citados acima. PolĂtico profissional desde os 21 anos, hoje tem 34 anos e jĂĄ estĂĄ no quarto mandato. Se eleito, serĂĄ o mais jovem a comandar a Casa. Ă formado em medicina, mas segue a carreira da famĂlia: o pai Ă© prefeito de Patos, cidade do semiĂĄrido da ParaĂba com 100 mil habitantes. Os avĂłs tambĂ©m foram deputados, tanto no Estado quanto em BrasĂlia. Quem conhece a cidade afirma que parece aqueles casos de novela, quando duas famĂlias do Nordeste casam os filhos, toda a linhagem vive da polĂtica, e eles governam a cidade por dĂ©cadas. Lira negocia colocar o projeto de lei da anistia para votação se tiver a garantia de que o PL e esses blocos votarĂŁo em peso no seu candidato. Tudo indica que vai conseguir. TambĂ©m interessa a ele empurrar essa pauta atĂ© o final do ano, para assegurar que ninguĂ©m mude de ideia na Ășltima hora.
O projeto que avança na CĂąmara leva o nĂșmero 2.858, de autoria do ex-deputado Major Vitor Hugo (PL-GO). O texto Ă© anterior ao 8 de janeiro e foi usado como base, mas o parecer que serĂĄ votado Ă© uma colcha de retalhos. O perdĂŁo deve ser estendido atĂ© a data das eleiçÔes de 2022 e prevĂȘ a anulação de multas aplicadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como a de R$ 22 milhĂ”es ao PL. O relator Ă© Rodrigo Valadares (UB-SE). Ele reclamou abertamente do uso da anistia para a escolha do novo presidente da Casa: “EstĂŁo utilizando a vida de seres humanos como moeda de troca”, disse.
Impeachment de Moraes Se no Congresso a anistia se tornou a pauta nĂșmero 1, o assunto da vez no Senado Ă© o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, protocolado na segunda-feira, 9. Foram anexadas as assinaturas de 1,4 milhĂŁo de brasileiros. Um grupo de 152 deputados encampa a proposta, mas o nĂșmero que interessa Ă© o de senadores. Segundo o site Votos Senadores, o placar atual Ă© de 36 a favor do impeachment, 29 indecisos e 16 contrĂĄrios. O site exibe os nomes de todos eles e como o eleitor pode acionĂĄ-los pelas redes sociais, e-mail ou telefone.
A decisĂŁo sobre a abertura do processo cabe ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que jamais deu sinal de que farĂĄ isso, a exemplo do que fez com outros 23 pedidos similares. Pelo contrĂĄrio, nesta semana ele pediu “prudĂȘncia”, dias depois de o paĂs assistir Ă enorme manifestação que cobriu a Avenida Paulista no 7 de Setembro. “Ă muito importante que o Senado analise isso. NĂŁo temos clima para outras matĂ©rias. A sociedade cobra, e essa resposta tem que ser dada Ă população. Chegamos no fundo do poço”, afirmou Eduardo GirĂŁo (Novo-CE), um dos signatĂĄrios do documento contra Moraes.
Alguns juristas afirmam que hĂĄ uma brecha na Lei nÂș 1.079, de 1950, a “Lei do Impeachment“, para que a Mesa Diretora delibere sobre o caso. Argumentam que o artigo 44 da lei prevĂȘ o recebimento da denĂșncia “pela Mesa do Senado”. Em seguida, caberia ao plenĂĄrio aceitar ou nĂŁo a denĂșncia, por maioria simples — ou seja, 41 senadores a favor. O tema, contudo, Ă© complexo: seja pelo ineditismo, seja porque a prĂłpria legislação começou a ser escrita a partir da Constituição de 1946 e acabou adaptada depois a uma nova Carta — logo, nĂŁo hĂĄ referĂȘncia constitucional clara.
O entendimento que prevalece em BrasĂlia Ă© o que prevĂȘ os Regimentos do Senado e da CĂąmara. Quem deu a largada a dois processos de impeachment contra presidentes da RepĂșblica — Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff — foram os presidentes da CĂąmara. Quem pode fazer o mesmo com um ministro do STF Ă© o presidente do Senado. A sociedade brasileira nĂŁo estĂĄ Ă vontade com o cerceamento de liberdades constitucionais — estas, sim, muito bem redigidas Ă letra da lei — nem com a censura ou a permanĂȘncia dos inquĂ©ritos ilegais conduzidos por Alexandre de Moraes O assunto foi debatido pelo prĂłprio Senado em setembro do ano passado com uma dezena de juristas. Na Ă©poca, o senador EsperidiĂŁo disse. “Em 2021, foram arquivados 32 pedidos de impeachment sobre juĂzes, e nenhum deles foi apreciado pelo plenĂĄrio. Ă uma discrepĂąncia.”
O fato Ă© que o recado das ruas no 7 de Setembro foi claro: o tempo do lado de fora do Congresso Nacional parece correr mais rĂĄpido. A sociedade brasileira nĂŁo estĂĄ Ă vontade com o cerceamento de liberdades constitucionais — estas, sim, muito bem redigidas Ă letra da lei — nem com a censura ou a permanĂȘncia dos inquĂ©ritos ilegais conduzidos por Alexandre de Moraes. Mais rĂĄpido ainda corre o relĂłgio de quem estĂĄ preso injustamente depois do 8 de janeiro, Ă espera de anistia.
Ruth Moraes e SĂlvio Navarro, Gazeta do Povo
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