por Flávio Gordon
“You are entitled to nothing.” (Frank Underwood, House of Cards)
Etimologicamente, a palavra sacerdote deriva do latim “sacerdos”, termo formado pela raiz sacer- (“sagrado”) mais a partícula -dhe (“dar”, “oferecer”), de origem indoeuropeia. Traduzindo de maneira literal, sacerdote seria aquele que dá ou oferta o sagrado. O sentido da palavra tem relação direta com a noção de sacrifício, do latim sacrificius, formado pela mesma raiz sacer- mais o complemento -facere (“fazer”), e cuja tradução literal seria “fazer” ou “tornar” sagrado.
O português informal capta bem o sentido original do termo quando os seus falantes empregam conotativamente o substantivo “sacerdócio” para designar o ato de se autossacrificar por algo maior que o interesse próprio. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, Machado de Assis diz que “o amor é um sacerdócio, a reprodução de um ritual”.
Já no sentido denotativo da palavra, ao longo de praticamente toda a história humana, e entre as mais variadas culturas, jamais terá ocorrido a alguém sensato conceber o múnus sacerdotal como algo diverso do ato de servir – algo como, por exemplo, a assunção de um cargo, a obtenção de uma promoção na carreira, uma realização pessoal, e, sobretudo, um direito universal a cujo acesso todos almejam e merecem. Não, em vez disso, o sacerdócio foi sempre concebido como um dever, não raro como um fardo doloroso e difícil de suportar sem um senso muito aguçado de autotranscedência.
E isso porque a noção de dever precede logicamente a de direito, que lhe é subordinada e relativa. É o que demonstra com maestria a filósofa Simone Weil em O Enraizamento:
“Um direito não é eficaz por si só, mas apenas pela obrigação a que corresponde; o cumprimento efetivo de um direito não provém de quem o possui, mas dos outros homens que se reconhecem obrigados a algo em relação a ele. A obrigação é eficaz desde que seja reconhecida. Ainda que uma obrigação não fosse reconhecida por ninguém, ela não perderia nada da plenitude de seu ser. Um direito que não é reconhecido por ninguém não é grande coisa. Não faz sentido dizer que os homens têm, por um lado, direitos, e por outro, deveres. Estas palavras expressam apenas diferenças de ponto de vista. A relação entre eles é a do objeto e do sujeito. Um homem, considerado em si mesmo, tem apenas deveres, entre os quais estão certos deveres consigo mesmo. Os outros, considerados do seu ponto de vista, têm apenas direitos. Ele tem direitos, por sua vez, quando é considerado do ponto de vista dos outros, que reconhecem obrigações em relação a ele. Um homem que estivesse sozinho no universo não teria nenhum direito, mas teria obrigações.”
Digo que em toda a história humana ninguém jamais concebeu o sacerdócio sob essa ótica e já me arrependo. Pois houve, sim, uma época e um lugar a partir dos quais, de maneira inédita, até mesmo essa função especial de intermediação entre o sagrado e o profano passou a ser secularizada, profanizada e compreendida sob a ótica do direito. Refiro-me, é claro, ao Ocidente contemporâneo.
Tudo começa na França do século 18, com a Declaração dos Direitos do Homem, recebida como um novo catecismo. “Todo governo deve ter por objeto a felicidade pública” – lê-se num dos esboços do documento. Há aí, claramente, uma fé política, cujo dogma principal foi consagrado pelos filósofos iluministas: o Estado pode e deve garantir a felicidade social.
Em 1791, por exemplo, lemos na La Feuille Villageoise, uma das publicações mais radicais da época: “O povo não deve apenas submeter-se à lei – ele deve adorá-la”. No mesmo jornal, o deputado jacobino Gilbert Romme afirmava que, se “o Evangelho fundou a religião das consciências, a lei é a religião do Estado, que também deve ter seus ministros, seus apóstolos, seus altares e suas escolas”. E, com efeito, na França revolucionária os legisladores passaram a ser vistos como os sacerdotes seculares da felicidade coletiva, os oficiantes dos direitos universais do homem.
Cito Simone Weil mais uma vez:
“A noção de direito, sendo de ordem objetiva, não é separável das de existência e realidade. Ela aparece quando a obrigação desce para o domínio dos fatos; consequentemente, sempre inclui em certa medida a consideração dos estados de fato e das situações particulares. Os direitos sempre aparecem como vinculados a certas condições. Apenas a obrigação pode ser incondicional. Ela se situa em um domínio que está acima de todas as condições, porque está acima deste mundo. Os homens de 1789 não reconheciam a realidade de tal domínio. Eles reconheciam apenas a realidade das coisas humanas. É por isso que começaram pela noção de direito. Mas, ao mesmo tempo, quiseram estabelecer princípios absolutos. Essa contradição os fez cair em uma confusão de linguagem e ideias que contribuiu significativamente para a confusão política e social atual. O domínio do que é eterno, universal, incondicional, é diferente daquele das condições de fato, e nele habitam noções diferentes que estão ligadas à parte mais secreta da alma humana.”
A sacralização do Estado promovida pelos “homens de 1789”, que fizeram dele um ente moral e um provedor da felicidade universal, resultou na absolutização da noção de direito. No século seguinte, como consequência, brotou do âmago da cultura burguesa europeia aquele tipo social que Ortega y Gasset alcunhou de “el señorito satisfecho” (o senhorito satisfeito). Em seu clássico A Rebelião das Massas, o filósofo espanhol descreveu-o como se segue:
“O novo fato social que aqui se analisa é este: a história europeia parece, pela primeira vez, entregue à decisão do homem vulgar como tal. Ou, dito de forma ativa: o homem vulgar, antes dirigido, resolveu governar o mundo. Essa resolução de avançar para o primeiro plano social ocorreu nele automaticamente, assim que amadureceu o novo tipo de homem que ele representa. Se, atentando aos efeitos da vida pública, se estuda a estrutura psicológica deste novo tipo de homem-massa, encontra-se o seguinte: 1) uma impressão nativa e radical de que a vida é fácil, abundante, sem limitações trágicas; portanto, cada indivíduo médio encontra em si uma sensação de domínio e triunfo que 2) o convida a afirmar-se a si mesmo tal como é, considerando bom e completo o seu patrimônio moral e intelectual. Esse contentamento consigo mesmo o leva a se fechar para qualquer instância exterior, a não ouvir, a não questionar suas opiniões e a não contar com os outros. Sua sensação íntima de domínio o incita constantemente a exercer predominância. Agirá, portanto, como se apenas ele e seus semelhantes existissem no mundo; portanto, 3) intervirá em tudo impondo sua opinião vulgar sem considerações, contemplações, formalidades ou reservas, ou seja, segundo um regime de ação direta (...) Esse personagem, que agora anda por toda parte e em qualquer lugar impõe sua barbárie íntima, é, de fato, o menino mimado da história humana. O menino mimado é o herdeiro que se comporta exclusivamente como herdeiro. Agora, a herança é a civilização – as comodidades, a segurança em suma, as vantagens da civilização (...) Pois bem: a civilização do século 19 é de tal natureza que permite ao homem comum instalar-se num mundo abundante do qual ele percebe apenas a superabundância de meios, mas não as angústias. Ele se vê cercado por instrumentos prodigiosos, medicamentos benevolentes, Estados previdentes, direitos confortáveis. No entanto, ignora o quão difícil é inventar esses medicamentos e instrumentos e assegurar sua produção para o futuro; ele não percebe o quão instável é a organização do Estado e mal sente dentro de si obrigações. Esse desequilíbrio o falsifica, o esvazia em sua raiz de ser vivente, fazendo-o perder contato com a própria substância da vida, que é o perigo absoluto, o problematismo radical. A forma mais contraditória da vida humana que pode surgir na vida humana é o ‘senhorito satisfeito’ (...) Isso, penso eu, evidencia com clareza suficiente a anormalidade superlativa que representa o ‘senhorito satisfeito’. Pois é um homem que veio à vida para fazer o que bem entende.”
Obviamente, da sensação de contentamento e triunfo, o senhorito satisfeito passa rapidamente à revolta, tão logo veja frustrado aquilo que considera seu direito. Dostoievski dedicou atenção ao tema em vários de seus romances e contos, mas gostaria aqui de lembrar passagens de um deles apenas: O Idiota. No livro, um espécime bem representativo do tipo geral revoltado, o personagem Antip Burdovski, é descrito pelo narrador da seguinte forma:
“Era um jovem vestido de um jeito pobre e relaxado, metido numa sobrecasaca com mangas que de tão sebentas tinham brilho de espelho, num colete engordurado, desabotoado até o alto, numa camisa de um branco que desaparecera, num cachecol de seda preto engordurado ao máximo e torcido feito corda, as mãos sujas, um rosto que era só espinhas, branco e, se é lícita a expressão, com um olhar de um descaramento nunca visto. Não era de estatura baixa, era magro, de uns vinte e dois anos. Seu rosto não expressava a mínima ironia nem a mínima reflexão; expressava, ao contrário, um enlevo completo e obtuso com o próprio direito e, ao mesmo tempo, algo que chegava a uma estranha e constante necessidade de estar e sentir-se permanentemente ofendido.”
A certa altura do romance, após invadir uma festa na casa do personagem-título – o Príncipe Liev Nikolaievitch Michkin –, Burdovski e três camaradas seus engatam num discurso furioso, repleto de exigências impertinentes e manifestações dos referidos “enlevo completo e obtuso com o próprio direito” e “necessidade de sentir-se permanentemente ofendido”. Nesse que, a meu ver, é um dos pontos altos da obra, a húbris e a autocomplacência dos jovens revoltados são impiedosamente expostas. Dostoievski faz Burdovski falar de maneira desconexa, a voz entrecortada por uma emotividade exacerbada e histriônica:
“‘Príncipe, não temos medo dos seus amigos, sejam lá quem forem, porque nós estamos no nosso direito... O senhor não tem o direito, não tem o direito, não tem o direito. Os seus amigos... Vejam só!’ – tornou subitamente a berrar Burdovski, olhando ao redor assustado e temeroso e excitando-se ainda mais do que antes, desconfiado e esquivando-se. – ‘O senhor não tem o direito!’ – e dito isto, parou bruscamente, como se tivesse cortado a conversa e, esbugalhando em silêncio os olhos míopes extremamente saltados, marcados por veias vermelhas e grossas, fixou-se interrogador no príncipe, inclinando-se de corpo inteiro sobre ele... ‘Não nos apresentamos humildemente, como parasitas em busca das suas graças. Entramos aqui de cabeça levantada, como homens livres, que não pedem uma esmola, mas sim formulam uma livre e altiva intimação (ouçam bem, notem bem!... uma intimação e não uma esmola)... Exigimos, exigimos, mas não pedimos!’ – balbuciou Burdovski, vermelho como um camarão.”
Eis que, por esses dias, deparei-me com um avatar brasileiro do senhorito satisfeito gassetiano e do revoltado dostoievskiano. Trata-se do jornalista Edison Veiga, que publicou na BBC News Brasil um artigo com título autoexplicativo: “Como as mulheres acabaram sempre relegadas ao segundo plano pelo cristianismo” (também reproduzido na Folha de S. Paulo). Seu argumento central é simples, como soem serem simples os clichês, os estereótipos e as ideias prontas: por sua longa história de machismo e misoginia, a Igreja Católica continua até hoje sem dar sinais de que um dia irá conceder às mulheres o direito de serem ordenadas e, assim, assumirem a função de sacerdotisas (diáconas, padras, bispas e papisas).
Refém inconsciente de uma filosofia progressista da história – segundo a qual a passagem do tempo implica necessariamente um aprimoramento moral da humanidade, e, portanto, concede ao homem contemporâneo o privilégio de se portar como juiz e palmatória dos homens de eras passadas –, Veiga mostra-se inconformado com o fato de que, em pleno século 21, a Igreja permaneça tão “atrasada”, e que, em vez de manter-se up-to-date com as últimas tendências em avanço social e igualdade de gênero (das quais as redações de jornal ocupam, por óbvio, uma posição de vanguarda), tenha ainda como prioridade a insistente tarefa de livrar as almas da danação eterna.
Para sustentar seu argumento e partilhar de sua indignação, Veiga convoca o que chama de “especialistas em história do cristianismo”, dentre eles o teólogo e pastor protestante Gerson Leite de Moraes (cuja missão declarada é afastar os evangélicos do radicalismo “neofascista” de Bolsonaro e reaproximá-los de Lula), a teóloga e freira feminista Ivone Gebara, e o famigerado “Frei” Betto, militante da Teologia da Libertação, amigo de Fidel Castro e sacerdote do lulopetismo. Uma seleção tão extraordinária de nomes nos faz recordar o comentário imortal do veterano repórter da CBS Bernard Goldberg: “Um jornalista pode sempre encontrar um especialista para dizer qualquer coisa que ele queira”.
O que o jornalista da BBC Brasil queria dos “especialistas” é que dessem um ar de autoridade científica a um arsenal de velhas lendas sobre a história da Igreja Católica, criadas na Reforma Protestante, difundidas pelos iluministas franceses, depois por desinformantes comunistas profissionais, e até hoje repetidas como verdades inquestionáveis pela intelligentsia de esquerda mundo afora, que professam sobre o tema uma historiografia à la O Código Da Vinci, a patacoada anticlerical de Dan Brown. Dentre essas lendas, destacam-se: 1) a ideia de que a Igreja Católica nada tem a ver com o cristianismo primitivo; 2) que o catolicismo foi institucionalizado pelo imperador Constantino (ou, em algumas versões, por São Paulo Apóstolo); e, finalmente, 3) que a hierarquia da Igreja e a proibição do sacerdócio feminino foram uma invenção humana, baseada numa deturpação (machista e misógina, por óbvio) da mensagem de Nosso Senhor Jesus Cristo.
De acordo, por exemplo, com a teóloga feminista: “Sacerdócio [feminino] oficialmente ordenado creio que não existiu. Porém, mais uma vez, é preciso voltar à distinção entre o movimento Jesus e o cristianismo institucionalizado”. Uma opinião que, para não restar dúvidas, o autor da matéria julgou por bem esclarecer aos leitores: “Ou seja: é preciso distinguir como se organizava aquele protocristianismo com Jesus vivo – ou logo após sua morte – em que havia uma certa horizontalidade, com homens e mulheres ocupando postos semelhantes, e o cristianismo que começou a se institucionalizar como religião em um contexto dominado por homens, comandado por homens e a serviço de homens”.
Já para o teólogo protestante e antibolsonarista, os relatos da época seguinte à morte de Jesus promoveram um “apagamento” intencional da figura feminina: “Ao longo do tempo, as mulheres foram sendo apagadas, o que revela uma tradição androcêntrica, machista e misógina que acompanhou a história da Igreja”, diz ele. “Foi feita uma opção ao longo da trajetória da Igreja que via na mulher uma inferioridade moral, representada por exemplo na figura de Eva [do livro do Gênesis], vista como a responsável pelo pecado, pelo mal do mundo. Sua contraposição é a figura de Maria [a mãe de Jesus], apresentada como um símbolo de uma esposa obediente, colocada no seu ‘devido lugar’, obedecendo e cumprindo seu papel.”
Segundo um outro especialista consultado, o historiador André Leonardo Chevitarese, a hierarquia eclesiástica não proveio de Jesus, tendo surgido depois, entre os séculos 2.º e 5.º. Nessa época, as mulheres foram absolutamente excluídas dos altares: “Elas jamais foram pensadas, lidas, concebidas para serem sacerdotisas. Este processo de hierarquização [da Igreja] ocorreu a partir de um intenso diálogo com as estruturas imperiais romanas, culminando com a Igreja Católica sendo o Império Romano e o Império Romano sendo essa Igreja Católica”.
Referindo-se a um trecho da Suma Teológica, em que São Tomás de Aquino fala de passagem da inferioridade da mulher, “Frei” Betto – conhecido por sua postura social progressista, sublinha com júbilo o jornalista – diz que “o único grande equívoco de São Tomás foi adotar a visão misógina da filosofia grega e considerar a mulher um ser inferior ao homem, inclusive no uso da razão”, visão que hoje “reverbera na misoginia da Igreja Católica, que ainda impede as mulheres de acesso ao sacerdócio e a outras escalas hierárquicas”.
Dos tantos disparates proferidos pelos especialistas prêt-à-porter, comecemos pelos mais vulgares (se é que há os menos). Em primeiro lugar, temos o teólogo protestante apontando o contraste, segundo a visão católica, entre a insubmissa Eva e a obediente Maria. Quanto a Eva, é preciso não esquecer, antes de tudo, que ela foi tentada e seduzida pela Serpente (Satanás). Mas, ao ceder à tentação de comer o fruto proibido, as Escrituras não a fazem mais pecadora que Adão, tanto que a punição divina, a expulsão do Paraíso, recai sobre ambos, e não apenas sobre ela, a mulher.
Já quanto a Maria – e aí reside a verdadeira aberração exegética –, ela não é retratada prioritariamente como uma mulher obediente ao marido, mas obediente a Deus. Ao contrário do que diz o pastor antibolsonarista, Maria não foi “colocada em seu devido lugar”, no sentido pejorativo e misógino que ele quis transmitir. Ela jamais cogitou a hipótese de não ser colocada no “devido lugar” de progenitora do Messias e de “cumprir o seu papel” na história da Salvação. Tempos depois, apesar de estar junto a eles no cenáculo, por ocasião do Pentecostes, tampouco lhe passou pela cabeça exigir o “direito” de ser incluída (por uma questão de paridade de gênero) entre os 12 apóstolos, caso em que talvez fosse hoje conhecida como Janja, e não como Santa Maria. Essa demanda artificial criada pela ideologia feminista (ideologia de origem marxista partilhada tanto por mulheres quanto por homens) nunca fez parte – e continua não fazendo – das expectativas da mulher católica média.
Maria não foi subjugada a cumprir o papel que Deus lhe atribuiu. Aceitou-o por livre decisão, por uma questão de fé, quando lhe teria sido muito mais fácil e cômodo recusá-lo. “Eu sou a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra” – foi sua resposta ao anjo Gabriel. Uma resposta que, longe de fazer de Maria uma mulher submissa, tornou-a insubmissa e infensa a Satanás, ao contrário de Eva, que disse não a Deus e sim ao Diabo (o que talvez explique o desejo por parte de alguns feministas e feministos de convertê-la em símbolo de libertação feminina). Porque a serpente da qual a velha Eva não se libertou no Gênesis é, enfim, pisada e esmagada pela “nova Eva” no Apocalipse.
Os “especialistas” insistem ainda, como vimos, numa suposta distinção entre o movimento de Jesus e o cristianismo institucionalizado. Trata-se aí, ao fim e ao cabo, do argumento protestante central, que consiste em negar a origem divina da Igreja. Assumindo esse argumento inteiramente, como se protestante fosse, diz a freira feminista:
“Acho importante igualmente distinguir o cristianismo do movimento Jesus. O movimento Jesus nasce dentro do judaísmo e foi uma espécie de volta à tradição ético-profética. Jesus de Nazaré não era cristão, era judeu. O cristianismo vai se afirmar através do Império Romano notadamente a partir de Constantino e Teodósio. Nessa perspectiva jamais perdeu seu caráter institucional imperial, salvo as pequenas exceções ao longo da história.”
Nada mais falso. Aparentemente não equipados cultural e cognitivamente para compreender a natureza sui generis de uma instituição simultaneamente espiritual e temporal, divina e humana, formada por um compósito transcendente-imanente representado pelo fenômeno singular da Encarnação do Verbo, os tais “especialistas” não concebem a ideia da Igreja como o corpo místico e visível de Cristo, fundada e instituída por nenhum outro além d’Ele. Sim, é verdade que Cristo instituiu uma Igreja baseada no amor. Mas não menos verdade é que também a tenha instituído com base na autoridade. “Com que autoridade você ensina essas coisas?” – perguntavam-Lhe os fariseus. E Jesus conclamava a autoridade do Pai, manifesta de forma inequívoca nos milagres do Filho.
Pois Jesus decidiu transferir essa Sua autoridade a um grupo de escolhidos. O apostolado é criado na Quinta-Feira Santa, na Última Ceia, quando Jesus institui a Eucaristia e exorta os comensais: “Fazei isto em memória de Mim”. É fato que Ele pregava a todos, com isso atraindo muitos seguidores e discípulos. Mas, dentre estes, Cristo resolveu selecionar apenas 12 para serem instruídos de modo especial, constituindo-os como os primeiros bispos, os quais deveriam falar e agir em nome Dele. A esses 12 escolhidos, deu poderes especiais para instruir, curar e converter toda a humanidade, uma missão que, obviamente, teria de se prolongar na história para além do tempo de vida dos primeiros 12, algo que, por si só, subentende a necessidade de uma contínua transmissão da autoridade originária. Dentre todas as suas ovelhas, portanto, Cristo selecionou um pequeno grupo de homens para serem pastores. “Apascenta as minhas ovelhas” – disse três vezes a Pedro, transmitindo ao pescador (agora já de almas, e não mais de peixes) a Sua autoridade para guiar os homens rumo à Salvação.
Daniel-Rops, autor de uma obra monumental sobre a história da Igreja, e especialista de fato, esclarece no primeiro volume da História da Igreja de Cristo, A Igreja dos apóstolos e dos mártires, a organização inicial da Igreja:
“Só podemos fazer uma ideia aproximada da sua organização. Não se pode pôr em dúvida que essa organização existisse, porque todo o empreendimento humano a pressupõe; o próprio sucesso do cristianismo no plano temporal prova que o seu desenvolvimento obedeceu a essa lei profunda da história segundo a qual um movimento, para se desenvolver, precisa de quadros sólidos, de um princípio de comando, de um método de ação, e tudo isso em estreita relação, como que fazendo corpo com a doutrina. O próprio Jesus, aliás, tinha transmitido essas estruturas aos seus discípulos: para quem souber ler os Evangelhos, um dos aspectos mais admiráveis da sua atividade sobre a terra é o esforço prático de organização e de instrução que realizou, e cujos efeitos se prolongaram até os nossos dias. Tudo nos prova que Jesus, Deus feito homem, sabia perfeitamente que, para lhe sobreviver, a sua obra teria necessidade de instituições humanas.”
O autor continua:
“Na comunidade primitiva, distinguem-se bem os fundamentos institucionais criados por Cristo. Colhemos a impressão de que os Apóstolos, suas primeiras testemunhas, aqueles que Ele mesmo ‘designou e estabeleceu’, gozam, como é natural, de uma grande autoridade moral. O número de 12, a que Jesus limitou o seu pequeno grupo, tem certamente o valor de um sinal, porque, assim que se tornou conhecido o suicídio de Judas, e antes que tivesse soprado o vento sagrado do Pentecostes, Pedro pediu aos outros que o substituíssem de comum acordo; tendo o colégio apostólico proposto dois candidatos, lançaram sortes e o Espírito Santo designou Matias (At 1, 15-26). Entre os 12, Pedro parece ocupar o primeiro plano. Vê-lo-emos assumir diversas vezes a liderança, como fez por ocasião desta eleição: é ele quem toma as iniciativas e a sua opinião sempre tem muito peso. Além dele, apenas João, filho de Zebedeu, parece destacar-se. Esta preeminência de Pedro, cuja importância será considerável quanto às suas consequências na história cristã, assenta também sobre uma declaração expressa do Mestre, que quis dar à sua fundação um princípio hierárquico; Cristo nitidamente designara, como ‘a pedra sobre a qual a sua Igreja seria construída’, este homem de coração generoso: Simão, a velha rocha.”
Nota-se, portanto, que Constantino não pode ter sido o responsável pela instituição e organização da Igreja, uma vez que foi essa organização já existente que permitiu a sua própria conversão. O imperador romano não se teria convertido sem a existência prévia de uma Igreja organizada, para a qual, aliás, contribuiu a sua própria mãe, Flávia Júlia Helena ou, simplesmente, Santa Helena, que construiu várias igrejas, dentre elas a da Natividade, em Belém, e a Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém. Como prova, basta lembrar que já houvera dezenas de bispos ao longo dos dois séculos anteriores a Constantino. Como, ainda no primeiro século, escreveu celebremente o santo e mártir Inácio de Antioquia, discípulo de João e sucessor de Pedro no bispado da então capital da província romana da Síria: “Onde está o bispo, aí esteja a comunidade, assim como onde está Cristo Jesus, aí está a Igreja Católica”.
Por fim, examinemos agora a tese central do artigo, segundo a qual é a “tradição androcêntrica, machista e misógina que acompanhou a história da Igreja” – nas palavras do pastor antibolsonarista – que impede o acesso das mulheres ao sacerdócio católico. Nesse tipo de argumentação, resta evidente, em primeiro lugar, o senso progressista de superioridade moral, e o quanto os adeptos dessa ideologia se acham no pináculo da história. Mas, ademais de soberbos, eles são também extremamente provincianos, proferindo juízos históricos não apenas desde a perspectiva restrita de sua própria geração, como também de seu próprio grupo político-ideológico de referência.
Com efeito, ignorando as lições de dois dos maiores historiadores europeus de todos os tempos – a de Fustel de Coulanges, segundo quem “é à luz de suas ideias, e não das nossas, que devemos julgar os antigos”, e a de Leopold von Ranke, segundo quem “todas as épocas são iguais perante Deus” –, esses autointitulados progressistas demonstram uma notável falta de amplitude de perspectiva temporal. São, nesse sentido, a ilustração perfeita daquilo que, em 1943, na palestra inaugural proferida na recém-criada Virgil Society, o poeta T. S. Eliot chamou de provincianismo temporal:
“Em nossa época, quando os homens parecem cada vez mais propensos a confundir sabedoria com conhecimento, conhecimento com informação, e a tentar resolver os problemas da vida com engenharia, começa a existir um novo tipo de provincianismo que requer um novo nome. É um provincianismo não de espaço, mas de tempo; um provincianismo para o qual a história é apenas o registro dos aparelhos que tiveram seu uso e que depois foram descartados, um provincianismo em que o mundo é propriedade exclusivamente dos vivos, um território onde os mortos não têm vez.”
Imersos, portanto, nas miudezas de sua própria época, esses caipiras temporais preocupam-se apenas em julgar com base nas próprias ideias, e jamais em compreender, as decisões dos antigos. Daí que os julgamentos sejam, necessariamente, boçais e extemporâneos, como dizer que a Igreja é historicamente androcêntrica, machista e misógina, quando a verdade é exatamente o contrário.
Ora, qual seria o status das mulheres no mundo ocidental contemporâneo se Jesus Cristo e Sua Igreja não tivessem existido? Basta, por exemplo, olhar para a situação feminina nos países islâmicos para imaginar. Enquanto o Corão diz que “os homens são superiores às mulheres”, o que autoriza os maridos a castigarem as esposas em caso de insubmissão (Surata 4:34), é diametralmente oposta a mensagem do Novo Testamento. Dirigindo-se aos cristãos em Éfeso, disse São Paulo: “Maridos, amai vossas esposas, assim como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela (...) Assim também os maridos devem amar as suas mulheres, como a seus próprios corpos” (Efésios 5,25-28). Também na Epístola aos Gálatas, lemos que “não há homem nem mulher, pois todos são um em Cristo Jesus”.
Essa ética matrimonial elevada, que decorre das interações de Cristo com as mulheres de seu tempo, é completamente ausente na literatura greco-romana. Hoje, a postura esperada de um marido para com sua esposa, mesmo entre pessoas de mentalidade secular e anticlerical, reflete o efeito revolucionário que a presença histórica de Cristo teve sobre as vidas das mulheres e sobre o casamento, especialmente no Ocidente. No livro As Mulheres Romanas: Sua História e Hábitos, o historiador romanista John Percy V. D. Balsdon afirma que “a conversão do mundo romano ao cristianismo [trouxe] uma grande mudança no status da mulher”. Referindo-se a um período histórico muito posterior, o mesmo foi dito pelo grande medievalista Jacques Le Goff em Uma Longa Idade Média: “O cristianismo medieval, longe de reduzir a mulher a um papel secundário, deu-lhe um verdadeiro lugar ao lado do homem”.
Tratava-se de um fenômeno inédito. Na Grécia antiga, por exemplo, a mulher tinha o mesmo estatuto de um escravo. Uma mulher ateniense respeitável não tinha permissão para sair de sua casa a menos que estivesse acompanhada por um vigia masculino confiável, geralmente um escravo designado por seu marido. Quando os convidados masculinos do marido estavam presentes em sua casa, ela não tinha permissão para comer ou interagir com eles, devendo se retirar aos aposentos femininos (gynaeceum). Como lamenta Calonice em Lysistrata, de Aristófanes: “Nós, mulheres, não podemos sair quando queremos. Temos de esperar pelos nossos homens”. E, como se queixa Medeia, de Eurípides: “Certamente, de todas as criaturas vivas e inteligentes, nós, mulheres, somos as mais infelizes”.
A esposa grega não podia se divorciar de seu marido, enquanto este podia divorciar-se dela quando bem entendesse. Em Atenas, os meninos não escravos eram enviados à escola, ensinados a ler e escrever, e educados em poesia, música e ginástica. Já as meninas não frequentavam escola de modo algum. Ao longo de toda a vida de uma mulher, ela não tinha permissão para falar em público. Na Odisseia, por exemplo, Homero faz Telêmaco repreender a sua mãe Penélope por falar na presença de homens.
A única mulher com relativa liberdade era a hetaera, ou amante, que geralmente acompanhava um homem casado quando ele participava de eventos fora de sua casa. A hetaera era a companheira e parceira sexual do homem. Como mostra a historiadora medievalista Régine Pernoud em O Mito da Idade Média, essa prática foi retomada no Ocidente moderno justo a partir do Renascimento, quando a influência cristã começou a decair em face da nostalgia pela antiguidade clássica, e quando a outrora frequente presença de rainhas e mulheres poderosas que caracterizou o período medieval (a exemplo de Leonor da Aquitânia) foi minguando, substituída justamente pela proeminência de amantes e concubinas (a exemplo de Madame de Pompadour).
O status das mulheres também era extremamente baixo na sociedade romana. Assim como na Grécia, a mulher romana não possuía nenhum dos direitos e privilégios desfrutados pelos homens. Enquanto muitas meninas de classe alta recebiam informalmente alguma educação em gramática e leitura, uma esposa romana, como sua colega ateniense, não tinha permissão para estar presente com os convidados de seu marido durante uma refeição. Havia inúmeras outras restrições. Por exemplo, uma mulher casada era comumente regida pela lei romana do manus, que a colocava sob o controle absoluto de seu marido, a quem pertencia todos os seus bens. Assim como na Grécia, essa lei permitia ao marido divorciar-se da esposa, mas a recíproca não se aplicava. De acordo com a Lex Voconia, promulgada em 169 a.C., uma mulher sob manus estava legalmente proibida de herdar propriedades. Ainda em vigor no início do quinto século, a lei recebeu fortes críticas de Santo Agostinho.
No entanto, as mais severas privações da liberdade e dos direitos de uma mulher romana tinham raiz na tabela 4 da Lei das Doze Tábuas da lei romana, surgidas no quinto século a.C. Estabelecera-se aí a lei do patria potestas, que conferia os direitos de pater familias ao homem casado. Nessa condição, o homem exercia um controle supremo e absoluto sobre a mulher, os filhos e até os netos, mesmo quando já adultos, tendo, inclusive, o direito de os castigar fisicamente e até de os executar.
Portanto, considerando o contexto em que surgiu, nota-se o quão inovador foi o modo como Jesus Cristo tratou as mulheres. Ao encontrar uma mulher samaritana no Poço de Jacó e ao pedir-lhe água para beber, Jesus provocou choque na própria mulher, que jamais poderia esperar que um homem judeu se lhe dirigisse a palavra: “Tu és judeu, e eu sou samaritana; como, pois, me pedes de beber?” (João 4,9). Segundo o costume da época, falar com um samaritano já era ruim o suficiente, mas Jesus foi ainda mais longe, ignorando a crença rabínica existente de que um homem respeitável não falava com uma mulher em público.
A elevação do estatuto social da mulher por parte do cristianismo fica evidente quando, no domingo de Páscoa, Cristo escolheu aparecer primeiro a mulheres, instruídas a contar de Sua ressurreição. Por que Jesus não disse a Pedro e João, que também tinham ido ao túmulo, para contar aos outros discípulos o que havia acontecido? Por que fez questão de que fossem as mulheres a contar aos homens? Porque, obviamente, a Sua mensagem e a Sua vida terrena consistiram precisamente na defesa dos mais fracos, humilhados e desfavorecidos, num contexto cultural em que, relativamente, as mulheres eram social e religiosamente negligenciadas.
Os Evangelhos ressaltam frequentemente a grande presença de mulheres entre os seguidores de Jesus, um fenômeno altamente incomum na Palestina do primeiro século. Na cultura predominante de então, apenas prostitutas e mulheres de reputação muito baixa seguiriam um desconhecido sem a vigilância de um homem da família. Assim é que, da perspectiva feminina, tão reconfortante deve ter sido a mensagem de Cristo que mulheres honradas não hesitaram em desafiar as normas sociais convencionais para segui-Lo, e Dele jamais ouviram palavras de reprovação. No Evangelho de Marcos, por exemplo, relata-se a ocasião em que uma mulher menstruada – um sinal de impureza, segundo o Levítico – veio por trás de Jesus a fim de Lhe tocar a borda do manto e ser curada de sua enfermidade física (Marcos 5,25-34). A resposta do Cristo foi curá-la e desejar-lhe paz.
A Igreja apostólica primitiva seguiu o precedente de Cristo quanto ao relacionamento com as mulheres. Os primeiros cristãos ignoraram as normas culturais restritivas e limitadoras às quais as mulheres estavam sujeitas em sua sociedade. Logo após a ressurreição física de Cristo, seus seguidores se reuniam regularmente no primeiro dia da semana (domingo) para renovar sua alegria pelo milagre testemunhado. Nessas ocasiões, as mulheres eram proeminentes, não apenas como adoradoras, mas também como lideranças. São Paulo observa que Apia, por ele chamada de “nossa irmã”, era líder em uma igreja doméstica na cidade de Colossos (Filêmom 2). Na cidade de Laodiceia, havia Ninfa, que tinha uma “igreja em sua casa” (Colossenses 4,15). Em Éfeso, junto ao seu marido Áquila, Priscila tinha uma igreja que se reunia “em sua casa” (1 Coríntios 16,19). Paulo refere-se a ela como uma de suas “companheiras de trabalho” (Romanos 16,3) na promoção da Grande Comissão de Cristo, na qual os seguidores foram instruídos a sair pelo mundo e fazer discípulos de todas as nações (Mateus 28,19).
A aceitação que as mulheres tinham nos círculos cristãos não era um fim em si mesmo. Isso as levou a se tornarem ardentes evangelistas e missionárias, como ilustram os casos de Priscila, Febe, Apia, Ninfa e tantas outras. De fato, o trabalho e o zelo das mulheres cristãs fiéis foram uma força poderosa no crescimento espiritual e numérico da igreja primitiva, bem como em sua expansão geográfica. Como afirma o historiador W. E. H. Lecky, as mulheres tiveram grande importância na grande conversão do Império Romano. “Nas épocas de perseguição”, diz ele, “figuras femininas ocuparam muitos dos primeiros lugares e fileiras do martírio”.
Não apenas as mulheres foram uma força importante na ascensão do cristianismo, mas também superaram em número os homens nos primórdios da Igreja. O sociólogo Rodney Stark estima em 60% a presença feminina na comunidade cristã primitiva. De fato, tão visível era a participação feminina na Igreja que o filósofo platônico Celso, um dos primeiros críticos do cristianismo, chegou a ridicularizar a nova religião pela atração que exercia sobre as mulheres, fazendo dela, segundo a perspectiva pagã tradicional, uma religião fraca e pouco viril (um juízo que, aliás, seria emulado por vários pensadores da modernidade, em especial por Maquiavel, Rousseau e Nietzsche).
Depois de tudo isso, o leitor ainda pode estar tentando a questionar: mas não seria contraditória a afirmação católica da dignidade da mulher e, ao mesmo tempo, a recusa em conceder-lhe acesso ao sacerdócio? Teriam os críticos razão em afirmar uma ruptura entre Jesus Cristo e a Igreja institucionalizada subsequente, notadamente em relação ao estatuto da mulher? A carta apostólica Ordinatio Sacerdotalis, segundo a qual a Igreja não tem o poder de permitir a ordenação feminina, teria sido uma invenção da cabeça do papa João Paulo II? Por outra, um ano depois, teria sido uma invenção da cabeça do então cardeal Ratzinger (futuro papa Bento XVI) a afirmação, na condição de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, de que a doutrina expressa na Ordinatio deve ser considerada pertencente ao depósito da fé? Teria sido uma decisão pessoal do cardeal William C. Levada, em seu “Decreto Geral sobre o delito da tentada sagrada ordenação de uma mulher”, de 2007, a punição com excomunhão automática (latae sententiae) a quem tente ordenar uma mulher e à própria mulher em busca da ordenação?
A resposta é, obviamente, não. Também nesse tema, como em tudo o mais referente ao apostolado, não há qualquer divisão entre Jesus Cristo e a Igreja. Porque, dentre as inúmeras manifestações e ações de Cristo em favor da elevação da dignidade da mulher, há só uma coisa que Ele não fez: escolher uma mulher para integrar o grupo dos 12 apóstolos. Assim também procedeu a Sua Igreja. Ao longo da história, várias mulheres santas, dentre elas Santa Teresa de Ávila e Santa Catarina de Sena, chegaram a ser incluídas entre os doutores da Igreja, uma das maiores honrarias católicas. Todavia, nem mesmo elas foram admitidas como sacerdotisas, e justamente porque o sacerdócio não é uma honraria, mas um serviço. Não é um direito, mas um dever.
Foi da decisão original de Jesus Cristo que derivou a conclusão de João Paulo II na Ordinatio. Tal como a própria Igreja em sua totalidade, também a interdição à ordenação feminina tem fundamento divino. Foi o próprio Cristo quem o desejou. E, se assim Jesus decidiu, a razão não pode ter sido a acomodação aos costumes da época, uma vez que Ele os desafiou sempre que preciso, especialmente em prol da elevação feminina. Não, Jesus decidiu pelo apostolado exclusivamente masculino provavelmente por saber que, conquanto válida para todos os discípulos, a sentença “Eis que vos envio como ovelhas no meio de lobos” valeria especialmente para os apóstolos, escolhidos para um ato supremo, e extremo, de abnegação.
Como se lê na Declaração Inter Insigniores, sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio:
“A Igreja não pode mudar sua doutrina com relação à reserva do sacerdócio aos homens apenas, porque esta é uma questão que toca na própria constituição da Igreja e na vontade divina manifesta no exemplo de Cristo. A teologia do sacerdócio ministerial, em sua conexão inseparável com a teologia dos sacramentos, a deixa ainda mais claro. Essa visão, longe de diminuir a dignidade da mulher, exalta o valor próprio e insubstituível da função feminina na Igreja, a exemplo de Maria, Mãe de Deus, e de tantas santas mulheres que ao longo dos séculos contribuíram de maneira singular para a edificação do Corpo de Cristo.”
Portanto, a Igreja não veda o sacerdócio feminino por não reconhecer a dignidade da mulher. Ao contrário, a Igreja sempre a reconheceu, de maneira única e inédita no decorrer da história humana. O que a Igreja não fez e não fará é ceder à estupidez feminista, a qual, negando a diferença e a complementariedade entre os sexos, tudo o que consegue é forçar a mulher, mesmo contra a sua vontade, a mimetizar o homem. Como, em 1950, escreveu Gustavo Corção em A Vocação da Mulher: “A famosa emancipação da mulher é qualquer coisa como andar sempre uma oitava acima de nossos timbres masculinos. Dizem as nossas mesmas frases, mas em falsete”.
E, contra as fantasias do feminismo, concluiu esse que foi um dos nossos maiores escritores: “Quem ainda duvida que nós precisamos do socorro e da ajuda feminina? Nós precisamos da mulher. Não somente em casa, como as vezes se diz. Mas na cidade, no mundo, na civilização. Precisamos que venham, mas que venham realmente como mulheres, isto é, com a paciência do véu e com a impaciência do amor”.
Que venham, enfim, como Marias, Apias, Priscilas, Febes, Teresas, Teresinhas, Bárbaras, Ediths, Verônicas etc., mas nunca como Janjas, Anittas e Natuzas...
Flávio Gordon, Gazeta do Povo
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