Jornalista Andrade Junior

sábado, 20 de abril de 2024

Um Brasil enlouquecido

 Ubiratan Jorge Iorio 


Em meio à profunda barafunda institucional em que estrebucha a democracia no Brasil, uma questão da maior relevância para a nossa vida alcançou finalmente devido destaque, aguçada pelo episódio do Twitter Files, que, certamente, ainda vai dar panos para um vasto mangueiral. O âmago da matéria pode ser resumido em duas perguntas: devem existir limites à liberdade de expressão? Há censura no Brasil?

Na primeira semana deste mês o jornalista americano Michael Shellenberger alertou para supostas trocas de e-mails entre funcionários do X (ex-Twitter), em que se afirmava que autoridades brasileiras estavam requerendo informações pessoais de usuários. O X, então, publicou uma nota dizendo que foi “forçado por decisões judiciais a bloquear contas de pessoas populares no Brasil” e que as determinações das autoridades brasileiras desrespeitaram o Marco Civil da Internet e a Constituição Federal.

Em seguida, Elon Musk, o dono da rede X, compartilhou a publicação do jornalista em sua rede, avisando que restabeleceria os perfis das pessoas censuradas, mesmo que isso implicasse o fechamento da empresa no Brasil. Acrescentou que Alexandre de Moraes, responsável pela condução do processo eleitoral por ocasião dos episódios relatados, “aplicou multas pesadas, ameaçou prender nossos funcionários e cortar o acesso do X no Brasil”. E elevou o tom: “Por que está demandando tanta censura no Brasil?”, afirmando ainda que o ministro “traiu de forma descarada e repetida a Constituição e o povo do Brasil” e sugerindo também que ele deveria “pedir demissão ou sofrer impeachment“. A reação de Moraes foi incluir Musk no inacreditável Decreto nº 4.781, de 14 de março de 2019, conhecido como “inquérito do fim do mundo”, e estabelecer uma multa diária de R$ 100 mil por perfil em caso de descumprimento da decisão judicial de suspensão de várias contas. Tudo isso ecoou como poderosa bomba no já descontrolado hospício tupiniquim e gerou numerosas manifestações.

A refrega chegou rapidamente aos quatro cantos do mundo. Parlamentares brasileiros foram ao Congresso dos Estados Unidos e ao Parlamento de Bruxelas para denunciar que a democracia no Brasil está sendo suprimida. A resposta do governo socialista do Brasil — e não se poderia esperar que fosse diferente — é que as redes sociais precisam ser regulamentadas. Ou seja, ao mesmo tempo que negou qualquer censura por parte do Judiciário, propôs, em bom português, criar mais censura. Mas o presidente da Câmara, especialista — como a cortiça — em flutuar em qualquer líquido, acertadamente achou por bem não pautar em momento tão tenso o PL nº 2.630, que propõe instituir a “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”, conhecido como projeto das fake news, ao mesmo tempo que substituiu o seu relator censor, o comunista Orlando Silva. A batalha foi em um crescendo, até que no último fim de semana a defesa da rede X no Brasil enviou a Moraes um ofício com o pedido do Congresso dos Estados Unidos de acesso aos supostos e-mails com as ordens judiciais emitidas por ele e direcionadas à X Corp., gestora da plataforma. Parece que o buraco passou a ser mais embaixo.

Porém, entre esses e outros desdobramentos da querela, um chamou bastante atenção, talvez por ter partido de onde não se esperava. Foi a declaração de Renato “Moicano” Carneiro, um lutador de MMA, na noite do último sábado, dia 13, ainda com a cara amassada imediatamente depois de ter vencido por nocaute o americano Jalin Turner: “Amo a América, amo a Constituição e amo a Primeira Emenda”, acrescentando em tom de aviso e em um linguajar típico de ringues que quem se importa de fato com o próprio país deve ler As Seis Lições, de Ludwig von Mises, um dos maiores defensores da liberdade no século 20 e expoente da Escola Austríaca de Economia.

Endosso e corroboro a recomendação literária do lutador, primeiro, por ser o autor do prefácio de uma das edições do referido livro, segundo porque venho sendo há muitos anos um gladiador intelectual, muitas vezes solitário, para difundir os ensinamentos da Escola Austríaca, e, por fim, porque se trata de um livrinho extremamente prático, de entendimento fácil e absolutamente indispensável, em que Mises, em seis palestras proferidas no final década de 1950, em Buenos Aires, mostrou o inacreditável retrocesso que as falácias socialistas e populistas provocam onde quer que sejam colocadas em prática. Ressalte-se que, infelizmente, são as mesmas ideias anacrônicas e fedendo a mofo que, sete décadas depois, o atual governo brasileiro vem tentando nos impor incansavelmente, à revelia da população, em conluio com globalistas, socialistas, comunistas, jornalistas e outros vigaristas “sociais”. Se há novidades, elas se restringem às pautas ambientais, culturais e de costumes, que há 70 anos apenas engatinhavam, mas a essência é a mesma: a ideologia do atraso, a apologia do Estado e a fobia do mercado.

Devem existir limites à liberdade de expressão?

A não ser que escolhamos viver como eremitas, é claro que a nossa liberdade não é absoluta. Quando chegamos a este mundo, já o encontramos com suas leis, coisas, pessoas e tudo o mais; apenas viemos ocupar nosso lugar entre elas. Nossa liberdade é condicionada por tudo o que existia antes de nós, é uma liberdade situada. Não podemos construir a vida à margem de todos esses condicionantes: eles são o que são e como são e ponto final. Por isso, é uma utopia pensar em uma liberdade sem restrições, pois não há ninguém que possa desfrutar dessa condição; todos nós temos restrições à nossa liberdade e devemos encará-las como as regras do jogo da vida.

Entretanto, quando um socialista fala em liberdade, ele está (mesmo que muitos deles não o saibam) inteiramente submerso no conceito de liberdade positiva (ou liberdade para), isto é, está aceitando a tese de que os cidadãos devem ser livres para fazer apenas aquilo que lhes for permitido fazer (permitido pelo Estado e seus funcionários de toga, obviamente). Assim, para um socialista — e para a maioria dos que se autodenominam social-democratas —, o tipo de governo ideal é aquele que, mediante comandos e ordens, interfere permanentemente na economia, na cultura e nos costumes, com objetivos “humanitários”.

Já um liberal da tradição da Escola Austríaca, como Mises, quando se refere à liberdade, está falando de liberdade de, ou liberdade negativa. Em síntese, os indivíduos devem ser livres para realizar suas escolhas, e o Estado deve limitar-se a garantir os direitos individuais básicos, por intermédio de normas de justa conduta, definidas com base nos usos, costumes e tradições e fundamentadas nos valores éticos e morais aceitos pela maioria das pessoas. Entre esses direitos, está o de livre expressão e manifestação.

Existe uma conexão óbvia entre liberdade pessoal e liberdade de expressão. Supressões à liberdade de expressão terminam suprimindo a liberdade pessoal. Tanto faz você dizer a um pianista que ele é livre para tocar o que desejar, mas que ele será proibido de apresentar-se em público, ou permitir que ele se apresente em qualquer lugar público, mas apenas tocando as músicas que lhe forem determinadas. Pois é, no Brasil enlouquecido atual, parece que você é livre para criticar quem desejar, desde que esse alguém seja conservador ou “de direita”.

A liberdade de expressão — assim como a de pensamento e de crença — é um direito natural e, portanto, inegociável, que jamais pode depender do Estado. Quando, por exemplo, Fulano xinga a mãe de Beltrano e este se sente ofendido, o que você acha mais razoável: Beltrano processar Fulano (ou quebrar a sua cara e enfrentar as consequências), ou o Estado aprovar uma lei proibindo que mães sejam xingadas? Tolher a liberdade de expressão é censurar, sim, senhor. Não é curioso ver quem há 40 anos gritava “censura nunca mais” defendendo a censura nas redes sociais? E não é mais curioso ainda ver jornalistas concordando com isso?

Existe censura e ditadura no Brasil?

É inegável que estamos presenciando uma crise institucional única em toda a nossa história. O que está acontecendo é extremamente grave, com supressão contínua de direitos constitucionais, bem como desrespeito aos princípios de justiça natural e devido processo legal. O sistema tradicional de freios e contrapesos entre os Três Poderes não está funcionando, graças a uma série de boicotes e interferências que vêm se intensificando há cerca de cinco anos, especialmente por parte de juízes da Suprema Corte, que vêm se imiscuindo em assuntos constitucionalmente atribuídos ao Legislativo e ao Executivo. Agem como ativistas adeptos da doutrina do direito alternativo, que sustenta que o papel dos juízes não é o de zelar pelo cumprimento da lei, mas o de contribuir para realizar as “mudanças sociais”, ou seja, para a implantação do socialismo, sempre em nome da “justiça social” e do “combate às desigualdades”. Você acha que cabe bem a um membro da Corte constitucional dizer publicamente que “nós derrotamos tal grupo político”?

A história é longa e cobre uma série de irregularidades e injustiças, todas — curiosamente — contra liberais e conservadores, principalmente contra várias pessoas que apoiaram ou trabalharam com o presidente Bolsonaro. A maioria está incluída no Decreto nº 4.781, conhecido como inquérito do fim do mundo, cujo objetivo declarado é “a investigação de notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandidiffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do STF e de seus membros; e a verificação da existência de esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e o Estado de Direito”.

Esse inquérito tem gerado muitas controvérsias, porque é muito claro, mesmo para quem não tem formação em Direito, que juízes não podem presidir investigações criminais como se fossem delegados de polícia, que cabe ao Ministério Público propor a denúncia e que — o que é muito importante — a alegada vítima do ato não pode ser o próprio juiz do caso que trata do mesmo ato alegado. Em suma, não são poucas as esquisitices jurídicas desse inquérito.

É muito grave o que está acontecendo no Brasil: qualquer crítica de conservadores é imediatamente tachada de “ataque” e tratada como atentado à democracia, sob o silêncio do Congresso e o apoio da imprensa; o Judiciário está politizado e parece enlevado com o excesso de poder de que desfruta; o Executivo não se cansa de bajular ditaduras espalhadas pelo mundo; há dois políticos presos e outros que tiveram seus mandatos cassados; vários jornalistas tiveram que se mudar para os Estados Unidos, as suas contas bancárias foram bloqueadas e suas redes sociais foram suspensas; mais de mil cidadãos foram presos e julgados em lotes, sob a acusação de terem praticado um “golpe de Estado”, quando na verdade apenas alguns dos que invadiram os prédios públicos cometeram delitos de depredação; um deles faleceu na cadeia; muitos foram soltos, mas submetidos à humilhação da tornozeleira eletrônica; há centenas de cidadãos comuns com contas nas redes sociais suspensas por “crime de opinião”; juízes e juízas conservadores foram destituídos; e um ex-assessor internacional de Bolsonaro está preso há três meses, sob a alegação de que teria fugido para os Estados Unidos para escapar da Polícia Federal, quando nem sequer ausentou-se do país no período da acusação.

É estarrecedor que em todos esses casos os acusados e seus advogados de defesa simplesmente não tenham acesso ao conteúdo completo ou à natureza das acusações, bem como aos elementos “probatórios” que compõem os registros e que as investigações continuem sem prazo para acabar, sem que os advogados tenham acesso total a elas, sem controle externo e com o consentimento do Ministério Público. Dos 11 juízes da Corte suprema, que deveriam ser politicamente imparciais, nove podem ser considerados de esquerda ou de centro-esquerda e, como eles atuam politicamente, pode-se afirmar que existem afinidades entre o Judiciário e o Executivo que, por sua vez, é apaixonado por ditaduras. Ao Legislativo caberia, segundo a Constituição, coibir os excessos do Judiciário, mas os presidentes da Câmara e do Senado vêm sendo lenientes e se esquivando de assumir essa responsabilidade, principalmente o do Senado, que será daqui a cem anos lembrado por sua omissão.

Em suma, a liberdade de expressão está comprometida no Brasil. Estamos indisfarçavelmente em um sistema autoritário. Na melhor hipótese, o que se pode dizer é que a nossa democracia está doente — e muito doente. O recado de Renato “Moicano” precisa ser ouvido. Mises estava certo.

*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste.














publicadaemhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/politica/um-brasil-enlouquecido/

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