Jornalista Andrade Junior

domingo, 17 de outubro de 2021

'Votar ‘bem’ e votar ‘mal’',

 por Mario Vargas Llosa  Só os países que estão convencidos da democracia e são favoráveis a ela votam ‘bem’

Os votos foram inventados nas eleições livres, para defender a democracia; os ditadores não precisam de eleições, já que as fabricam conforme seu gosto. De uma declaração sobre o “bem” votar, um comentarista da televisão deduziu que eu me referia à eleição que perdi em 1990: os que votaram “bem” votaram em mim e os que votaram “mal”, não. 

Não havia pensado nisso, mas, por essas e outras críticas – muitas, na verdade –, deduzi que me havia equivocado. Tinha de explicar isso melhor, não para evitar as críticas, mas dar-lhes fundamento, se tivessem. 

A coisa me parece muito simples: votar “bem” é votar pela democracia; votar “mal” é votar contra ela. Isso é sempre tão claro e evidente? Não, com certeza. Às vezes, sabê-lo não é tão fácil a princípio; somente com o passar do tempo fica claro quando se votou bem ou mal. Por exemplo, os ingleses – um povo que raras vezes se equivoca neste assunto – agora estão descobrindo que votar a favor do Brexit, contra a União Europeia, foi um erro e a democracia mais antiga do mundo poderá pagar caro por isso. 

Eu pensava, quando falei isso, sobretudo no caso da Venezuela. Ainda estava vivo o comandante Chávez. Eu ia com frequência a Caracas, onde tinha muitos amigos. Fiquei assustado que houvesse tantos – entre eles, vários empresários – que, entusiasmados, se preparavam para votar nele. Este os subornava com suas promessas de não alterar em nada o sistema que imperava no país e, além disso, melhorar as relações do Estado com os empresários. 

Estes pareciam acreditar nele. “Havia muita corrupção com Carlos Andrés Pérez”, ouvi dizerem. “Mas com o comandante Chávez haverá dez vezes mais corrupção, a imprensa será censurada e ninguém poderá dizer isso. Ademais, só haverá eleições manipuladas”. “Já se verá.” E se viu, pois foi esta a última vez que os venezuelanos tiveram eleições livres. 

Votar “mal” é fechar as portas para a democracia, como foi feito no Peru nas últimas eleições, isso se for verdade que elas foram limpas, o que muitos colocamos em dúvida. Enquanto isso, o dólar sobe e quem pode saca suas economias ou investimentos e os leva para o estrangeiro; os cofres públicos se veem cada dia mais órfãos de recursos. Talvez não se chegue ao que pretendeu o partido Perú Libre (que apresentou Castillo como candidato à presidência, pois seu líder, Vladimir Cerrón, foi condenado pelo Judiciário por acusações de roubar o Estado), que o Peru integre o grupo que reúne Venezuela, Cuba Nicarágua. Mas, em todo caso, a situação do país é crítica e poderia ocorrer um golpe de Estado em que a ditadura militar ficasse no poder 10 ou 20 anos, como ocorreu outras vezes. 

Isso não é votar “mal”, contra a liberdade e o progresso? Não seria melhor que os alemães não tivessem se entregado de corpo e alma a Hitler nas eleições de 1932, com os milhões de mortos da 2.ª Guerra que derivaram da convicção que tinha o líder nazista de derrotar a URSS, dominar a Europa e firmar um tratado de paz com a Inglaterra? Votavam bem os italianos que o faziam por Mussolini, e os espanhóis por Franco na Espanha?

O resultado de eleições pode ser trágico para um país se os cidadãos que votam não preveem as consequências que o resultado eleitoral poderia ter. Isso não desqualifica as eleições nem o voto popular, que costumam ser, sobretudo nos países ocidentais, responsáveis e democráticos, mas isso não funciona assim no mundo subdesenvolvido, onde a cada dia vemos casos como o da Nicarágua, onde o comandante Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, metem na cadeia todos os candidatos que poderiam fazer frente às suas intenções de se reeleger. Que valor podem ter semelhantes eleições em que a vitória dos atuais governantes está garantida de antemão e com porcentagens precisas? 

Em Cuba, na China, na URSS e nos antigos países satélites celebravam-se eleições pontuais, em que ninguém acreditava, pois só serviam para os governantes se inteirarem secretamente do estado das coisas em seu país. Eleições só têm sentido nas democracias, enquanto o grande leque de partidos de centro e de direita – que vão desde os socialistas até os conservadores, passando pelos democratas-cristãos e os verdes – expressam suas proximidades e diferenças, para estabelecer alianças mais ou menos sólidas que lhes permitam formar um governo.

Essas eleições são úteis, com certeza, e ninguém gostaria de suprimi-las. Mas eleições em países em que acaba de ocorrer um golpe de Estado, como agora na Guiné, onde a arrasadora maioria que está por trás dos golpistas se apressa para celebrá-lo manifestando sua adesão, têm um sentido democrático? Tenho dúvidas a respeito e me parece, após o sucedido no Peru nas últimas eleições, que semelhante entusiasmo deveria ser considerado com apreensão. Ficaria feliz se a ONU, a OEA e seus organismos representativos fossem obrigados a inspecionar aquelas eleições antes de legitimá-las. Creio que o ocorrido no Peru e em outros países da América Latina levanta dúvidas demais sobre a validade daquelas missões de vigilância eleitoral, que, com frequência, só servem para conceder um ar de suposta validade a eleições de natureza suspeita. 

Nada disso significa que eleições sejam inúteis. Aqui sim, faz sentido falar em votar “bem” ou “mal”, me parece: não tem a ver com os candidatos, mas com os eleitores, pois são estes últimos os que legitimam eleições ou as convertem em um circo, se votam, como fizeram os eleitores do PRI no México por cerca de 80 anos, em uma farsa que servia aos governantes beneficiados com os resultados para aceder ao poder e aproveitar-se dele. 

A única maneira de assumir uma responsabilidade eleitoral digna desse termo é criando uma sociedade democrática. A solução parece coisa de louco e pode ser que seja. Como pode existir uma sociedade democrática se as eleições não são verdadeiramente representativas e não nos dizem nada sobre a seriedade e a consciência dos eleitores? 

O voto útil pressupõe sociedades bem constituídas e convencidas de que a democracia, com seus riscos e perigos, é o melhor de todos os pactos possíveis, da qual resultarão o progresso e a justiça para a imensa maioria da população. E nem sequer nessas circunstâncias o voto é sempre válido e legítimo. Em outras sociedades, onde essa opção não está definida, ou está somente em parte, o voto pode ser extremamente precário, uma maneira de questionar ou até mesmo atentar contra as bases da sociedade, pela qual se pretende mudar radicalmente de sistema. 

Isto é o que costuma acontecer quando se vota “mal”, para destruir as bases democráticas sobre as quais a própria sociedade se sustenta, transtornando-a e subvertendo-a, a fim de que ela mude ou se altere essencialmente. Votar “mal” ou votar “bem” não é algo casual; é uma maneira de decidir se optou-se por uma forma de sociedade – a democrática – ou se isso não está claro; ou melhor, como ocorre na América Latina ou na África – mas não na Ásia, por exemplo, onde tudo parecia indefinido até pouco tempo atrás. 

O voto bem intencionado ou mal intencionado não é anterior à eleição; é, antes disso, uma confirmação dos passos prévios da assunção da validez segura ou escassa da razão eleitoral. Os países que não estão convencidos da razão de sua sociedade ser “democrática” costumam votar “mal”. Só os que estão convencidos da democracia e são favoráveis a ela votam “bem”. Mas isso não vale para todos os casos, e dúvidas a respeito disso sempre emergirão. Que só serão resolvidas quando for tarde demais e já não haja mais nada a se fazer. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Premio Nobel de Literatura


Com Reuters e O Estado de São Paulo



















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