Jornalista Andrade Junior

sábado, 30 de outubro de 2021

"Prato do dia: filé criado em laboratório",

  por Dagomir Marquezi


A estratégia é começar com produtos de alto luxo e popularizar conforme esse mercado de elite se estabeleça


Um repórter da revista britânica The Economist recentemente pediu um filé de peito de frango. Provou. “Tinha a aparência, o cheiro e o sabor exato de um filé de carne branca de galinha”, declarou em sua reportagem.

Estaria constatando o óbvio. Acontece que o repórter se encontrava na sede da Upside Foods, uma empresa de alta tecnologia em Berkeley, na Califórnia. E nenhum frango foi abatido para que ele saboreasse seu prato. O filé havia sido criado em laboratório, a partir de algumas poucas células de galinha.

Pouco mais de mil pessoas experimentaram até agora essas carnes de “cultura celular”. O processo ainda é muito caro, e o estágio de pesquisa tem um longo caminho pela frente. Por enquanto, o produto é oferecido apenas num clube privado de Cingapura e numa empresa de culinária experimental de Tel-Aviv, em Israel.

Essa história ainda é muito recente. O primeiro hambúrguer criado a partir de células surgiu em 2013 na Universidade de Maastricht, na Holanda, numa experiência do professor Mark Post. Segundo reportagem da revista Exame, o evento histórico envolveu sua degustação ao vivo por uma emissora de TV britânica. O hambúrguer original de Mark Post custou US$ 330 mil para ser produzido. Em oito anos, esse custo já caiu para menos de R$ 40 por unidade.

O preço não assusta os investidores, que estão entusiasmados com a ideia. Quase cem empresas estão na corrida para colocar a primeira “carne de cultura” no varejo. A onda inicial está sendo chamada de “estratégia Tesla”: começar com produtos de alto luxo e popularizar conforme esse mercado de elite se estabeleça.

A BlueNalu, de San Diego, está desenvolvendo células de um dos animais mais caros do mundo: o bluefin tuna, conhecido em português como atum rabilho. Em 2019, um único peixe dessa espécie foi vendido por US$ 3 milhões num mercado de Tóquio. Com esse preço, o bluefin está sendo pescado sem controle desde os anos 1950. Calcula-se que sua população nos oceanos já tenha caído 96%.

Outro exemplo de mercado de luxo está sendo visado pela startup francesa Gourmey. Ela está usando células de ovos de pato para recriar o foie gras. Este é um produto quase mítico da alta culinária que envolve um alto grau de crueldade. Criadores entopem gansos e patos com ração gordurosa, enfiando a comida com pilões pelas suas gargantas adentro. Os fígados das aves incham até que elas sejam abatidas. O prato foi banido em 17 países, e no Brasil a proibição está em processo judicial.

A reportagem da revista Economist levanta mais uma razão em defesa da carne de laboratório: a higiene. “Carne de galinha construída a partir de células nunca entrou em contato com fezes, eliminando assim o risco de salmonela.”

Existem ainda outras vantagens técnicas nas carnes de laboratório. Uma delas é nutricional. Carnes de laboratório podem ter a adição de vitaminas, ômega 3, proteínas, etc. Outra vantagem: seu sabor pode ser incrementado ou personalizado na manipulação genética.

O processo, obviamente, não é milagroso. As células precisam de nutrientes para crescer na estufa. O que leva a uma contradição. O nutriente mais comumente usado por enquanto é o FBS, ou “soro fetal bovino”. Que vem justamente do sangue retirado de vacas prenhes pouco antes do abate. As companhias do setor estão procurando um nutriente sintético que substitua o FBS.

A Impossible Foods usa um “molho secreto” chamado legheniglobina, que torna o sangue dos animais vermelho, mas também é encontrado em plantas. Ainda não é exatamente o nutriente necessário, mas ajuda a replicar o sabor e o aroma originais das carnes.

Propaganda da Beyond Pork na China | Foto: Divulgação

Seria a carne de laboratório uma moda passageira? Os substitutos vegetais também eram considerados um nicho isolado, com seus hambúrgueres de lentilha e suas salsichas de soja. A reportagem da Economist cita a Beyond Meat como exemplo da mudança de paradigma. A BM começou como uma empresinha “alternativa” em 2009. Hoje, está presente em 80 países, inclusive o Brasil. Suas vendas em 2020 cresceram 36% com relação a 2019, somando US$ 406,8 milhões. Lançada no mercado de capitais, a Beyond Meat hoje vale US$ 7 bilhões. E conseguiu penetrar até no complicado mercado chinês, com o Beyond Pork.

Até outro dia, uma carne feita em laboratório era coisa de filme de ficção científica

Gigantes da indústria frigorífica, como Sadia (da BRF), Seara (da JBS), Marfrig, Cargyll e Tyson Foods, estão investindo firme em alternativas vegetais à carne. E tudo revela que vão mergulhar de cabeça nos produtos de laboratório quando se tornarem comercialmente viáveis. Essas empresas não pensam agora em substituição da carne natural. Apostam num mercado com ambas as opções, visando a franca expansão de vegans, vegetarianos e “flexitarianos” — consumidores que priorizam vegetais e diminuem progressivamente os produtos de origem animal.

Essa transformação chega com força ao mercado de laticínios, que também começou pequeno, atendendo consumidores com intolerância à lactose. Hoje essa indústria de alternativa ao leite já vale globalmente US$ 20 bilhões, e conquistou 15% do mercado americano de laticínios. Não é nenhuma novidade. Budistas produzem leite vegetal na Ásia há 1.500 anos. Leite de soja é consumido na China há séculos. O lendário empresário Henry Ford (1863-1947) era um entusiasta: “É uma simples questão de pegar os mesmos cereais que as vacas comem e fazer deles um leite que é superior ao produto natural e muito mais limpo”.

Não é um produto totalmente bem resolvido, segundo a Economist. “Leite de arroz quase não contém nutrientes. Leite de coco tem muita gordura saturada. Leite de aveia precisa de adição de açúcar, minerais e vitaminas — mas, ao contrário do leite de vaca, é uma fonte de fibras. Leite de amêndoas precisa de 4 litros de água para cada litro de leite.”

Até outro dia, uma carne feita em laboratório era coisa de filme de ficção científica. Agora, graças ao esforço de dezenas de fintechs, ela está cada vez mais próxima de chegar ao prato de gente comum.


Revista Oeste


















publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2021/10/prato-do-dia-file-criado-em-laboratorio.html

0 comments:

Postar um comentário

Twitter Delicious Facebook Digg Stumbleupon Favorites More