escreve Guilherme Fiuza
Saudade daquele tempo de paz e harmonia, quando o povo sabia que estava dando seu suor pra construir um Brasil melhor pros empreiteiros
(…)
— Ah, tá. Mesmo assim.
— Também é contra?
— Claro. De auditável pra ditável é uma sílaba só. Quem garante que ali na solidão da cabine não vão sumir com essa sílaba? Um latido a menos e lá se vai a lisura da eleição.
— Latido?
— Sim. Au. Tira o au e o voto fica ditável. Já imaginou? Você na cabine e alguém de fora ditando o seu voto? Acabou a democracia.
— É, realmente. Mas e se conseguirem criar um sistema seguro que não permita esse latido a menos, quer dizer, que não permita a perda dessa sílaba crucial e o voto passe a ser auditável mesmo. Você apoia?
O que o brasileiro mais quer é ver a quadrilha voltar a sorrir
— Não.
— Por quê?
— Já viu as pesquisas?
— Pra presidente?
— É.
— Vi. O favorito tá disparado.
— Pois é. Tá tão clara a vantagem que no meu modo de ver o país nem precisava gastar tempo e dinheiro com eleição. Entrega logo o palácio pra ele, que já morou lá e sabe direitinho onde fica tudo.
— Principalmente o cofre.
— Aí você tocou no ponto central. Esse homem é generoso. Abriu o cofre pros amigos, pros filhos, pros afilhados, pros padrinhos e pros sócios. Não ficou naquela mesquinhez de trancar tudo e deixar o dinheiro parado.
— Por isso ele lidera com folga as pesquisas.
— Exatamente. O que o brasileiro mais quer é ver a quadrilha voltar a sorrir. Saudade daquele tempo de paz, harmonia, sem ódio, quando o povo sabia que estava dando seu suor pra construir um Brasil melhor pros empreiteiros conscientes e açougueiros biônicos.
— Agora me emocionei.
— Calma, não chora. Nostalgia não leva a nada. O homem tá de volta.
— Tá mesmo! Com ou sem voto auditável.
— Porra, de novo esse papo? Esquece isso, companheiro. Que ideia fixa.
— É que estão falando por aí…
— Não interessa. Esquece. Não existe. “Estão” falando quem? Meia dúzia de reacionários?
— É, meia dúzia de paranoicos. Eu até achei que tinha visto milhões de pessoas nas ruas mas aí não vi nada na TV e nos jornais, então acho que foi impressão.
— Cuidado com esse teu sintoma. Não acredita em nada que não esteja concretamente numa tela diante de você.
— Tem razão. Nem sei o que eu fui fazer na rua.
— Pode deixar que não comento com ninguém.
— Obrigado. Mas então você acha mesmo que o voto auditável com registro impresso…
— Cala a boca!
— Desculpe. Escapou.
— Você tá se arriscando. Vai acabar sendo convocado pra CPI.
— Não! Por favor. Eu não fiz nada.
— Então se liga. E firma nas pesquisas. Pesquisa é ciência.
— Eu sou a favor da ciência.
— Que bom. Isso sim é auditável. O meu preferido é o Instituto Data Vênia. Eles provam por A + B que o bom ladrão é inocente desde que só tenha lesado as pessoas certas.
— Fizeram essa auditoria?
— Claro.
— Quem fez?
— O próprio Instituto Data Vênia.
— Ué? Ele auditou a si mesmo?
— Qual é o problema? Economiza dinheiro público.
— Não tinha pensado nisso. E o que a auditoria concluiu?
— Que se o bom ladrão fez mal a alguém foi sem querer, e quem é você pra sair julgando os outros assim.
— Eu?
— Não, rapaz. Os juízes invejosos que detestam quem dá certo.
— Ufa. Entendi. É, a inveja é uma merda.
— Nem fala. Por isso esses recalcados estão por aí querendo eleição com voto assim, com voto assado. Estão claramente tentando achar um jeito de desmentir as pesquisas.
— Esses institutos são tão bons, não dá pra fazer uma pesquisa mostrando que o líder já está eleito?
— Interessante. Acho que dá, sim.
— É só trocar essa coisa abstrata de “se as eleições fossem hoje” por algo mais assertivo: “as eleições foram ontem”. E já anuncia o resultado.
— Genial.
— Aí o líder já pode botar a mão na massa e pegar a chave do cofre, não precisa mais ficar por aí lutando contra o voto audit… Desculpe, quase escapou de novo.
(…)
Revista Oeste
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