Jornalista Andrade Junior

domingo, 21 de outubro de 2018

'F for fake',

por Pedro Bial

A culpa não é do WhatsApp. Responsabilizar o aplicativo de mensagens por notícias falsas seria o mesmo que culpar a televisão pelas mentiras grosseiras, e vitoriosas, que, em propaganda eleitoral gratuita, decidiram eleições bem frescas na memória — e a história não acabou bem.

O veículo não mente, pode ser usado para propagar falsidades. Falo como repórter, mensageiro tantas vezes acusado de autor das (más) notícias que é de seu ofício trazer.
Tampouco pode-se debitar toda a responsabilidade na conta dos bem, mal ou pior intencionados que remetem mentiradas, num misto de malícia e inconsequência. (Isso não se aplica a casos de patrocínio e comercialização do envio de “fake news” em massa. Aí é caso de polícia que, se comprovado, pode degenerar até em impeachment do candidato por elas beneficiado e/ou responsável.)
Em sua imensa maioria, as chamadas “fake news” não resistem a uma leitura minimamente atenta. Digamos assim que, do ponto de vista de quem as recebe, são todas “boas demais para ser verdade”. E é aí que reside a autoria fundamental da metamorfose da mentira em verdade.
Notícias falsas emplacam porque vêm atender aos desejos do receptor, que assim, de forma rápida e reativa, as legitima e alça à categoria de fatos. Invariavelmente, as “fake news” funcionam porque dizem o que o sujeito que as recebe quer ouvir, enfeitam com adereços de verdade as mentiras mais peladas. A notícia falsa não vem informar, e sim confirmar como realidade o sonho do eleitor que vê o jogo da política como vê futebol — sem desconfiar que, no caso, ele é a bola.
Acresça-se a isso o uso intensivo do “big data” que identifica e mapeia eleitores, suas carências e anseios, instrumento este disponível para todas as campanhas, mais ou menos competentes em sua exploração.
Só quem trabalha com jornalismo sabe que notícia verdadeira e relevante não é coisa simples de buscar, apurar, hierarquizar e publicar. A facilidade que a internet representa para a livre expressão de ideias e opiniões trouxe também a absurda noção de que basta caneta ou teclado na mão para fazer um jornalista, como se a posse de um bisturi tornasse alguém um médico.
Para complicar ainda mais o quadro, é da natureza humana: assim como buscamos a verdade, ansiamos pela fantasia, não vivemos sem ela, nem sobrevivemos — um menino de rua faminto, tal qual um prisioneiro de Auschwitz, dorme para sonhar que está comendo. Ainda por cima, para tornar complexo o complicado, muitas vezes é pela ficção que conseguimos abordar aspectos de outra forma inacessíveis da realidade.
O leitor poderá dizer: “Ora, isso lá é hora para filosofia?”. No que eu responderei que não há hora marcada para pensar e fazer o autoexame que precede o aprendizado — a tal da autocrítica. Não me parece inteligente nem honesto atribuir a outros as derrotas de nossa autoria.
Falsários podem enriquecer, ou chegar ao poder, antes de desmascarados — vale sempre rever o clássico documentário de Orson Welles, “F for fake”. Hoje abriu em São Paulo a maior mostra da obra de Ai Wei Wei, artista chinês que se tornou símbolo da luta por democracia e liberdade no mundo. Quando estive com ele, perguntei como se diz “fake” em mandarim. Performático e malcriado como gosta de ser, respondeu:
“fuck”. Do chinês para o inglês e daí para o nosso português, os significados se confundem, pois “foda” aqui não é ofensa, é expressão que pode designar coisa boa, ou difícil. Ou difícil e boa, como muitas vezes é o próprio ato. Tá foda. E tá só nas preliminares.

O Globo






























EXTRAÍDADEROTA2014BLOGSPOT

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