Lexum
Infelizmente, cumpre iniciar esse texto com um registro triste. É de se lamentar que um Ilustre Ministro da Suprema Corte sinta a necessidade de responder publicamente, por meio de artigo em jornal, a críticas direcionadas à instituição que integra. O debate institucional exige serenidade e distanciamento, especialmente de quem ocupa posição de tamanha relevância no Estado de Direito.
Pois bem. O artigo em questão – publicado no Estadão – apresenta uma defesa enfática do Supremo Tribunal Federal (STF) diante das críticas recebidas, destacando realizações administrativas e decisões que, segundo ele, reforçam a estabilidade institucional e promovem avanços sociais. Entretanto, essa defesa revela uma compreensão equivocada do papel constitucional do STF, desconsiderando princípios fundamentais que sustentam a ordem democrática e o Estado de Direito. A atuação da Corte, como exposta por Barroso, desafia diretamente os pilares da separação de poderes, da preservação das liberdades individuais e da função legítima do Judiciário.
Ao destacar a atuação do STF em áreas como igualdade de gênero, meio ambiente e segurança pública, Barroso apresenta a Corte como um agente de transformação social, atribuindo-lhe funções que pertencem ao Legislativo e ao Executivo. No entanto, a Constituição Federal não confere ao Judiciário a prerrogativa de legislar ou implementar políticas públicas. O papel do Supremo deve ser o de intérprete fiel da Constituição e guardião das liberdades individuais, não o de condutor de mudanças sociais baseadas em preferências ideológicas. Esse comportamento ultrapassa os limites constitucionais e fere o princípio da separação de poderes, fundamental para o equilíbrio entre as instituições democráticas.
O argumento de que a alta judicialização no Brasil é reflexo da confiança popular no Judiciário inverte a lógica do problema. A judicialização excessiva muitas vezes decorre de omissões legislativas e da ampliação indevida do papel do Judiciário, que se apropria de competências que não lhe pertencem. Defender essa expansão como um avanço institucional ignora os riscos que tal postura impõe à democracia representativa. A separação de poderes existe precisamente para evitar que um único poder concentre funções essenciais ao funcionamento do Estado. Quando o Judiciário assume funções legislativas e executivas, enfraquece o próprio sistema democrático ao substituir a vontade popular por decisões judiciais.
Ao justificar decisões que restringem direitos fundamentais sob o pretexto de proteger a democracia ou combater a desinformação, o STF desrespeita princípios básicos do Estado de Direito. A condução do inquérito das fake news, sem a participação do Ministério Público, exemplifica esse desvio. Trata-se de uma afronta ao devido processo legal e à segurança jurídica, essenciais para a preservação das liberdades individuais. A Constituição exige que qualquer restrição a direitos seja justificada de forma clara e objetiva, não baseada em interpretações elásticas ou interesses circunstanciais. Como bem observou o saudoso Ministro Aliomar Baleeiro, “não aplicar o dispositivo indicado, ou aplicar o não indicado, assim como dar o que a lei nega, ou negar o que ela dá, equivale a negar vigência de tal lei” (RTJ 64/677). A distorção do texto legal pelo STF representa exatamente esse desrespeito ao dever de aplicar a lei conforme ela foi escrita.
A defesa de Barroso também incorre em argumentos falaciosos. Ao afirmar que é injusto criticar o STF por aplicar a Constituição, desvia-se da crítica principal: não se trata da aplicação da Constituição, mas da sua interpretação criativa e politicamente orientada. Além disso, a exaltação de conquistas administrativas e de decisões populares serve apenas para obscurecer a discussão sobre os limites constitucionais da atuação do STF. O bom desempenho administrativo não justifica a extrapolação de competências nem a violação de garantias fundamentais.
O Supremo Tribunal Federal deve ser um guardião da Constituição e um protetor das liberdades individuais, atuando dentro dos limites que a própria Constituição estabelece. A defesa de uma atuação expansiva do STF, como faz Barroso, compromete esse papel essencial e ameaça a estabilidade institucional. A doutrina do Judicial Engagement, desenvolvida por Randy Barnett, propõe um Judiciário ativo na defesa dos direitos individuais, mas sempre fiel ao texto constitucional. Esse equilíbrio evita tanto a omissão quanto o ativismo judicial desmedido. Quando o Judiciário ultrapassa seus limites constitucionais, deixa de proteger a sociedade e passa a impor sua vontade, o que contraria a própria lógica de um Estado Democrático de Direito.
Essa tendência de atribuir ao Judiciário um papel de legislador, além de perigosa, foi alertada por Lord Devlin, que afirmou: “é grande a tentação de reconhecer o judiciário como uma elite capaz de se desviar dos trechos demasiadamente embaraçados da estrada do processo democrático. Tratar-se-ia, contudo, de desvio só aparentemente provisório; em realidade, seria ele a entrada de uma via incapaz de se reunir à estrada principal, conduzindo inevitavelmente, por mais longo e tortuoso que seja o caminho, ao estado totalitário” (Judges and Lawmakers, 1976). A defesa de Barroso por um STF protagonista segue exatamente esse caminho arriscado.
Os princípios do Estado de Direito exigem que decisões judiciais sejam fundamentadas na Constituição e nas leis, e não influenciadas por circunstâncias excepcionais ou pressões momentâneas, garantindo a imparcialidade, a legalidade e a segurança jurídica. Oliver Wendell Holmes Jr. advertiu que “great cases, like hard cases, make bad law” (Northern Securities Co. v. United States, 193 U.S. 197, 1904), lembrando que casos de grande comoção social frequentemente distorcem os princípios jurídicos consolidados. A justificativa de Barroso para o ativismo judicial se ancora justamente em temas de grande apelo popular, mas ignora os riscos de enfraquecer a estrutura constitucional.
É fundamental compreender que a defesa de um Judiciário forte não deve ser confundida com a aceitação de um Judiciário que se arvora em legislador ou gestor de políticas públicas. A estabilidade institucional e a preservação das liberdades exigem que cada poder exerça suas funções de forma rigorosa e responsável. O STF, ao agir além de suas competências, não apenas desequilibra o sistema de freios e contrapesos, mas também fragiliza a confiança nas instituições democráticas.
O Constitucionalismo Republicano defendido pela Lexum reforça que o Estado tem como principal função preservar a liberdade, e que a separação de poderes é fundamental para garantir esse equilíbrio. Cabe ao Judiciário aplicar a lei como ela é, sem reinterpretá-la para atender a interesses momentâneos. Quando esses princípios são ignorados em nome de supostos avanços sociais, colocam-se em risco as bases da democracia e abre-se espaço para abusos de poder.
A crítica ao ativismo judicial não busca enfraquecer o Supremo, mas reafirmar a importância de seus limites constitucionais. Um Judiciário que respeita esses limites é mais eficaz na proteção das liberdades e no fortalecimento da ordem democrática. Ao contrário, um Judiciário que desconsidera esses limites compromete não apenas a sua legitimidade, mas também a própria estabilidade do Estado de Direito.
Tal como Quincas Borba, que utilizava raciocínios sofisticados para justificar ações egoístas sob o disfarce de lógica, a defesa de Luiz Roberto Barroso por um Supremo Tribunal Federal ativista recorre a argumentos aparentemente racionais para legitimar a expansão indevida das competências da Corte. Assim como o Humanitismo racionalizava a imposição de poder com o lema “ao vencedor, as batatas”, o discurso de Barroso busca naturalizar a intervenção judicial em temas que deveriam ser tratados pelo Legislativo e pelo Executivo.
Essa retórica obscurece o fato de que a erosão da separação de poderes não fortalece a democracia, mas, ao contrário, abre caminho para abusos de autoridade disfarçados de avanços sociais. O Constitucionalismo Republicano da Lexum alerta para esse risco ao reafirmar que o Estado existe para preservar a liberdade e que a separação de poderes é essencial para evitar a concentração de poder.
Um Judiciário que ultrapassa seus limites constitucionais compromete a segurança jurídica, enfraquece as instituições democráticas e ameaça as liberdades individuais. Defender um STF forte significa exigir que a Corte atue com responsabilidade, dentro dos limites que a Constituição impõe, aplicando a lei como ela é, sem distorcê-la para atender a interesses momentâneos. O caminho para a estabilidade institucional não passa pelo protagonismo judicial, mas pelo respeito rigoroso às funções de cada poder, condição indispensável para a preservação do Estado de Direito.
Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.
*Artigo publicado originalmente no site lexum.substack.com.
publicadaemhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/artigo-do-ministro-barroso-no-estadao-a-expansao-inadequada-do-stf-e-os-riscos-ao-estado-de-direito/
0 comments:
Postar um comentário