Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

'A origem da ilegalidade',

 por Flavio Morgenstern


O conteúdo do Inquérito 4.781 até hoje é um mistério — acusações genéricas são ventiladas na mídia, o que não ocorria nem mesmo nos anos de chumbo do regime militar


Às 6h02 da manhã de 27 de maio de 2020, a campainha do condomínio tocou, avisando que a polícia queria entrar na casa de alguém que nunca havia sido acusado de nenhum crime. Ato contínuo, uma viatura da Polícia Federal estacionou, despejando seis homens armados. Um deles carregava um mandado em mãos. Outro reconheceu o alvo da operação. Aproveitou para dizer que era fã de seus vídeos. Tratava-se do youtuber católico Bernardo Pires Küster.

A operação terminou por levar um notebook, um iPad que Bernardo deixava para crianças da família e seu celular. Os policiais ainda permitiram que Küster anotasse alguns números de telefone de advogados antes de ter o material levado para Brasília.

Outros não tiveram a mesma “sorte” de Bernardo. Os investigados (talvez devamos chamá-los de “vítimas”) pelo inquérito variaram no relato de acordarem com policiais revirando seus quartos ou até mesmo com armas apontadas para esposas grávidas. O único a conseguir gravar um trecho da ação foi o humorista Rey Bianchi, enquanto sua esposa se desesperava de choro.

Bernardo, como é conhecido, não fazia ideia do porquê estava sendo tratado como um criminoso perigosíssimo — ele, acostumado a andar cercado pelo povo. Tudo o que pôde saber é que estava sendo acusado em um tal Inquérito 4.781, no Supremo Tribunal Federal. Um crime federal. Aquilo que, em filmes norte-americanos, faz com que a polícia local seja afastada e entrem “os feds” em cena. Ameaças grandes, como terrorismo ou ataques alienígenas.

Até hoje nenhum dos investigados sabe qual seria o suposto “crime” em questão. Algo tão grandioso que permitiu uma operação policial no auge da pandemia — quando operações contra traficantes com armamento capaz de abater helicópteros nas favelas do Rio foram proibidas por decisão de Edson Fachin, ministro do STF. Já contra youtubers, humoristas, jornalistas e ativistas, sem que se saiba até hoje por qual crime, tudo foi realizado.

acesso às armas
Edson Fachin, ministro do STF | Foto: SCO/STF

Novas buscas e apreensões ocorreram no dia 16 de junho, e ainda outras viriam contra ativistas e empresários. O Brasil, que tinha se acostumado a ver prisões de políticos durante a Operação Lava Jato, agora via a mesma mecânica voltar-se contra pessoas acusadas de serem “bolsonaristas”. O que aparentemente é tão grave quanto movimentar bilhões para financiamento próprio e de ditaduras. Algumas vezes, os investigados eram chamados de “golpistas” — quase sempre acusando alguma expressão de indignação privada, como “tem de limpar este Congresso” e outras verbalizadas por cerca de 102% das pessoas que leem notícias.

Acordar todo dia antes das 6 da manhã

Bernardo Küster, por meses, não conseguiu mais dormir até as 6 da manhã, sempre imaginando que a Polícia Federal voltaria à sua casa. Como voltou à casa de Allan dos Santos, sempre tratado como “blogueiro bolsonarista acusado de espalhar fake news”, mesmo que nem sequer um blog possuísse. Após se mudar para os Estados Unidos, Allan passou a ser tratado sempre como “foragido” — epíteto que não é reservado a um Edward Snowden, por exemplo.

O conteúdo do Inquérito 4.781 até hoje é um mistério — acusações genéricas são ventiladas na mídia, o que não ocorria nem mesmo nos anos de chumbo do regime militar. Chamado de “inquérito das fake news”, foi também apelidado de “inquérito do fim do mundo” pelo ex-ministro do Supremo Marco Aurélio Mello, título que rendeu um dos livros jurídicos mais lidos do país. A ele se somaram o “inquérito dos atos antidemocráticos” e o “inquérito das milícias digitais”. Todos parecem trocar informações entre si. A Procuradoria-Geral da República exigiu o arquivamento de todos, mas o pedido foi solenemente ignorado.

Livro Inquérito do Fim do Mundo | Foto: Reprodução

Além disso, veio da CPMI das Fake News, que fez a esquerda passar tanta vergonha que foi arquivada sem nem apresentar um relatório. Já a CPI da Covid, reconhecida pela população como “CPI do Circo”, pediu quebras de sigilo bancário, telefônico e telemático de jornais que criticavam os políticos que a geriam, de maneira flagrantemente ilegal. Afinal, uma CPI só pode investigar o objeto ao qual se propõe (no caso, a falta de respiradores em Amazonas), e não a mídia, a cor do céu ou o final de Caverna do Dragão. Os dados foram compartilhados com os inquéritos do STF. Os senadores nem se deram ao trabalho de ouvir os investigados: foi como um delegado pedindo quebra de sigilo de alguém por ouvir dizer, sem nenhuma prova, nem mesmo indício. A pena pelo abuso de autoridade chega a mais de quatro anos de cadeia. A devassa foi tão violenta que os senadores pediram todas as mensagens privadas em todas as redes sociais, cópia integral do iCloud, fotos dos contatos, todas as geolocalizações, histórico de buscas no Google e dados de saúde.

Denúncia baseada em crime não existente

O crime que gerou tudo isso? Bem, não há crime de “fake news” no ordenamento jurídico brasileiro. Ainda que houvesse, não se conhece nenhum inquérito secreto para investigar, digamos, desvio de dinheiro público com essas características: a Lava Jato realizava tudo às claras. Nada justifica o tamanho da força estatal contra pessoas acusadas de minudências — embora sejam sempre tratadas como “acusadas” ou “investigadas” em manchetes jornalísticas, criando sentimentos negativos nos leitores de antemão, como se fossem esquartejadores.

O termo “fake news” foi colocado em circulação pela mídia norte-americana como uma desculpa para o fracasso das pesquisas eleitorais, que afiançavam uma vitória fácil de Hillary Clinton

Até hoje, simplesmente nenhuma das ditas “fake news” foi apresentada. Fica-se apenas com um clima de suspeita no ar: “pessoas que divulgam fake news” são tratadas como se fossem mentirosas compulsivas. O clima, na verdade, é perfeito para a tirania, que sempre abusou da desconfiança mútua para se livrar de quem discordasse de seus métodos — e nunca se preocupava em mostrar que alguma das denúncias fosse verdadeiramente falsa. Bastou popularizar o termo “fake news” após a eleição de Donald Trump para que a lógica se invertesse: hoje, muitos preferem ficar do lado da censura, mesmo sem apontar qual seria a dita notícia falsa — ou “desinformação”.

Mídia como denúncia

O termo “fake news” foi colocado em circulação pela mídia norte-americana como uma desculpa para o fracasso das pesquisas eleitorais, que afiançavam uma vitória fácil de Hillary Clinton. Na vida real, o Partido Republicano ganhou a Presidência, o Senado e a Câmara, hegemonia que não ocorria havia 87 anos.

Também foi a mídia brasileira que colocou em circulação um termo vaporoso, impreciso e obscuro, criado ad hoc justamente por ser dúbio: as “milícias digitais”. Quem teria inventado tal teoria da conspiração? Um dos registros mais antigos que podemos encontrar é uma entrevista do jornalista Marlos Ápyus, que já foi de O Antagonista, a um podcast denominado Rebobinando Talks. O título do episódio hoje é curiosamente revelador: “Milícias Digitais: Elas Existem?”. Tudo ainda era uma dúvida. Sua descrição é taxativa em ser duvidosa: “Nesse episódio do Rebobinando Talks, o Marlos Ápyus vem conversar sobre essas supostas milícias. Elas realmente existem? São tão organizadas quanto parecem? Respondem a algum grupo no poder?” (sic)

Apesar de retirado misteriosamente do ar, nele revela-se algo que seria logo replicado por muitos jornalistas: Ápyus crê na existência de “milícias digitais” porque via no Twitter pessoas que se seguiam mutuamente, e, quando um perfil divulgava o conteúdo de outra pessoa, olhava para o perfil daquela segunda pessoa e via que ela também tinha divulgado o da primeira em troca. Ou seja, exatamente o que faz com que o Twitter tenha rios de dinheiro: o botão de retweet. Para Ápyus, era uma prova de uma “operação”, de uma “milícia” perigosa e completamente “ordenada”.

Distopia

Supostas fake news e a existência de “milícias digitais” foram o pontapé inicial para a instauração da censura no Brasil | Foto: Reprodução

A “prova” final para Ápyus de que havia um poderosíssimo sistema destruidor da democracia era que um dos perfis mais atuantes na época, o “Bolsonaro Zuero”, era de um então amigo em comum de Ápyus e Danilo Gentili, que posteriormente virou assessor do próprio Jair Bolsonaro. BUM! Estava pronta a teoria da conspiração de que Jair Bolsonaro fora eleito com fake news (como Trump), sendo que quase tudo eram piadas e que Bolsonaro seria “um risco para a democracia”. (Era uma distante época em que não se precisava explicitar o humor — ele era inferido presumindo-se inteligência no leitor.) Em pouco tempo, a outra teoria da conspiração, a dos “robôs controlados por Carlos Bolsonaro”, estaria pronta: ela daria ensejo a mais quebras de sigilo e buscas e apreensão, que até hoje não encontraram uma única ordem do filho do presidente a qualquer jornalista ou ativista.

Logo a mesma teoria conspiratória estaria sendo propalada pelo jornalista José Fucs no Estadão, que conseguiu a façanha de “traçar” como milícia digital bolsonarista até perfis radicalmente anti-Bolsonaro, como o do youtuber Nando Moura. Os jornalistas sempre os tratam como “milicianos” ou “rede de fake news”. Não é preciso apresentar provas. Outra fonte do inquérito mais uma vez não foi a lei, mas uma reportagem: a de Felipe Moura Brasil na revista Crusoé. Com base em mensagens passadas por Raphaella Avena, modelo que vendia cursos de sedução e erotismo, Moura Brasil diz ter “identificado” mais pessoas a serem investigadas. Tratava-se de trocas de mensagens em grupos falando de política, muitas vezes até com ironias como “vamos lá, robozada!”. Mas o tom conspiratório era em mi menor: bastava apresentar as mensagens, e depois falar em “torneiras de dinheiro público” ou “cargos no governo” sem fazer qualquer mínima conexão lógica entre os fatos.

Censura boa, tias do Zap más

Os inquéritos gêmeos, o 4.781, das supostas “fake news”, e o 4.828, das tais “milíciais digitais”, foram só o pontapé inicial da instauração da censura no Brasil. Sem base nenhuma na lei, permitem que jornalistas e blogueiros acusem seus desafetos sem provas, para serem fichados por uma autoridade que investiga e julga ao mesmo tempo — além de ser a suposta vítima — e que as vítimas da máquina de moer do sistema sejam sempre chamadas então de “investigados”.

Políticos constantemente se escoram nos inquéritos para perseguir seus desafetos. O deputado Fausto Pinato e o senador Fabiano Contarato já ficharam jornalistas desafetos por “ataques”. O crime de injúria é tratado quase como inexistente no ordenamento brasileiro: quem seria preso ou teria de pagar multas por xingar uma pessoa? Não é a própria essência de um país livre? Agora, investigações por “ataques” já foram realizadas até para quem criticou o ministro Alexandre de Moraes no Clube Pinheiros. E a censura é comemorada por jornalistas, ativistas e entidades de esquerda.


Notícia do site Poder360, publicada no dia 5/9/2021 | Foto: Reprodução

O escritor e linguista judeu Victor Klemperer escreveu, durante o nazismo, como a ascensão do Terceiro Reich se deveu muito a uma mudança anterior de vocabulário. Em LTI – Lingua Tertii Imperii, publicado em 1947, Klemperer mostra como toda terminologia oficial da língua alemã havia adquirido tons militares — até com condecorações militares para esportistas. Hoje, basta acusar quem você quer perseguir com a mesma terminologia: milícias, ataques, desinformação, alvo, operação, ordem. Com nenhuma mudança na lei, e com termos cirúrgicos repetidos goebbelsianamente por jornalistas (até com variações como “milicianos digitais”), a censura passa a ser aplaudida. Tudo teve método.


Revista Oeste


















publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2022/10/a-origem-da-ilegalidade-por-flavio.html

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