escreve Flávio Gordon
“Identificar o mal e os malvados gera uma grande satisfação, uma gratificação quase espiritual, o sentimento de que há um universo moral ordenado e dotado de sentido, no qual o bem e o mal podem ser pronta e facilmente separados.
Ainda mais recompensante é a convicção de que, quando bem definido e identificado,
o mal pode ser esmagado sem arrependimento ou remorso.
Essa atitude legitimou os grandes massacres do nosso tempo:
o Holocausto, os genocídios soviético e chinês e o genocídio ruandês”
Paul Hollander, Political Violence: Belief, Behavior and Legitimation
Em janeiro de 1849, Friedrich Engels publicava na Nova Gazeta Renana (revista editada por Karl Marx) um artigo intitulado “O Conflito Magiar”, no qual atacava virulentamente diversos movimentos nacionalistas, acusados de “reacionários” e “contrarrevolucionários”. Dizia então um dos pais fundadores do comunismo:
“Essas relíquias de nações impiedosamente mantidas sob botas no curso da história, como dizia Hegel, esse lixo étnico sempre se transforma em porta-estandarte da contrarrevolução, e assim permanece até o seu completo extermínio ou perda de seu caráter nacional, na medida em que a sua própria existência em geral é, por si mesma, um protesto contra uma grande revolução histórica”.
A expressão original que aqui traduzo por “lixo étnico” é Völkerabfälle. Com ela, o articulista referia-se nominalmente a povos como os sérvios, os escoceses das terras altas, os bretões, os eslavos, os bascos, entre outros. Segundo Engels, todos esses povos historicamente obsoletos deveriam ser conduzidos ao “completo extermínio” — tradução livre da expressão gänzlichen Vertilgung. Das palavras em alemão para “extermínio” ou “eliminação”, o fiel escudeiro de Marx optou deliberadamente pelo substantivo feminino Vertilgung, cujo sentido preciso é o de extermínio de parasitas ou insetos.
Também em 1849, no artigo “Pan-Eslavismo Democrático”, Engels dizia que “nada na história se conquista sem violência e crueldade implacável [eherne Rücksichtslosigkeit]”, e que, portanto, haveria fatalmente “uma batalha inexorável de vida ou morte [unerbittlichen Kampf auf Leben und Tod] contra aqueles eslavos que traíssem a Revolução; uma luta de aniquilação [Vernichtungskampf] e cruel terror [rücksichtslosen Terrorismus] — em defesa não dos interesses da Alemanha, mas dos interesses da Revolução”.
De acordo com George Watson, historiador dos textos fundadores do socialismo, essa era a primeira vez na retórica política contemporânea em que se propunha o genocídio de maneira tão explícita. E isso quase cem anos antes do Holocausto nazista!
Nota-se, pois, que, ao contrário do que reza a cartilha dos apologistas, a violência política sem paralelos promovida por regimes comunistas no século 20 (como os de Stalin, Mao Tse-tung e Pol Pot) não foi uma “deturpação” de um marxismo imaculado originário. Diferente do cristianismo, a religião política comunista não nasceu de mãe virgem, mas de meretriz encarquilhada e sifilítica, para a qual o genocídio, antes que desvio acidental de rota, foi sempre uma exigência doutrinal intrínseca.
Ao contrário do que celebremente propagandearam Kruschev e seus agentes de influência, Stalin não foi um traidor dos ideais revolucionários, mas o seu mais competente realizador. O terror vermelho não começou com o camarada Djugashvili, mas com o próprio camarada Ulyanov, fundador da URSS.
É o que mostra, entre outros, o historiador Richard Pipes, autor de estudos consagrados sobre o bolchevismo, dentre os quais uma densa pesquisa com base nos quase 7 mil manuscritos inéditos de Lenin, que revelam um líder bolchevique cruel, cínico e desumano, verdadeiro modelo para o seu sucessor. “No que diz respeito à personalidade de Lenin” — escreve Pipes —, “notamos de imediato o seu completo desprezo pela vida humana”.
Um dos documentos que Pipes tornou famoso foi uma diretiva de Lenin às autoridades bolcheviques da província de Penza, onde camponeses “kulaks” haviam se insurgido contra a política de confisco de grãos. Em 11 de agosto de 1918, escreveu o líder revolucionário aos camaradas Kuraev, Bosh e Minkin:
“O levante deve ser reprimido de maneira inclemente. Devemos dar o exemplo. Enforquem publicamente não menos do que uma centena de kulaks, homens ricos e sanguessugas. Divulguem os seus nomes. Confisquem-lhes todos os grãos. Façam de tal modo que, num raio de centenas de quilômetros, as pessoas vejam, tremam, saibam e gritem: estão estrangulando, e irão estrangular até a morte, os sanguessugas kulaks”.
Desde Lenin, portanto, a aniquilação — física e moral — dos adversários tem sido parte essencial da prática política da esquerda revolucionária, especialmente de matriz marxista-leninista. Foi assim na URSS, na China, no Camboja, na Coreia, na África e em Cuba, até hoje o modelo político mais próximo e mais caro à esquerda brasileira, em especial ao lulopetismo. A Cuba de Che Guevara, que não estava brincando ao decretar “o ódio como elemento de luta… um ódio intransigente, tão violento que impulsiona um ser humano para além de suas limitações naturais, fazendo dele uma violenta e fria máquina de matar”.
Quando, em 1964, na Assembleia da ONU, “El Chancho” defendeu os paredões de fuzilamento do regime castrista, estava apenas dando mais uma prova desse imperativo homicida inerente a todo projeto político revolucionário.
No Brasil, a esquerda marxista-leninista foi sempre fiel a essa tradição. Tanto assim é que, ao contrário da fábula costumeira segundo a qual as guerrilhas surgiram no Brasil em reação ao regime militar, os partidos e movimentos comunistas brasileiros, sucursais da matriz cubana (e, pois, soviética), começaram a ensaiar uma tomada violenta do poder já em pleno governo João Goulart, um líder político aliado. Quem o diz não é nenhum bolsonarista ou entusiasta do regime militar, mas uma intelectual esquerdista da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Sob uma aparência de normalidade democrática e organização regular, o PT jamais cessou de promover a violência política contra adversários e pregar a sua extinção
Com efeito, os dados apresentados por Denise Rollemberg no livro O Apoio de Cuba à Luta Armada no Brasil evidenciam que a narrativa dominante da intelligentsia brasileira simplesmente inverte a ordem dos acontecimentos e dos fatores: antes que consequência do assim chamado “golpe de 1964”, a opção da esquerda pela revolução armada ao estilo foquista cubano foi uma de suas causas.
Nas palavras da autora: “Quanto à revolução brasileira, Cuba apoiou a formação de guerrilheiros desde o momento em que assumiu a função de exportar a revolução, quando o Brasil vivia sob o regime democrático do governo João Goulart, ou seja, antes da instauração da ditadura (…) Cuba apoiou, concretamente, os brasileiros em três momentos bem diferentes. O primeiro, como disse, foi anterior ao golpe civil-militar. Nesse momento, o contato do governo cubano era com as Ligas Camponesas (…) Cuba viu nesse movimento e nos seus dirigentes o caminho para subverter a ordem no maior país da América Latina (…) A relação das Ligas com Cuba evidencia a definição de uma parte da esquerda pela luta armada no Brasil, em pleno governo democrático, bem antes da implantação da ditadura civil-militar. Embora não se trate de uma novidade, o fato é que, após 1964, a esquerda tendeu — e tende ainda — a construir a memória de sua luta, sobretudo, como de resistência ao autoritarismo do novo regime. É claro que o golpe e a ditadura redefiniram o quadro político. No entanto, a interpretação da luta armada como, essencialmente, de resistência deixa à sombra aspectos centrais da experiência dos embates travados pelos movimentos sociais de esquerda no período anterior a 1964”.
Na assim chamada “redemocratização”, o Partido dos Trabalhadores e seus partidos e movimentos satélites encarnaram perfeitamente essa tradição. Sob uma aparência de normalidade democrática e organização regular, o partido jamais cessou de promover a violência política contra adversários e pregar a sua extinção (social ou física). Assim como seu mentor Che Guevara, José Dirceu tampouco estava brincando quando, em 25 de maio de 2000, cinco dias após militantes petistas fantasiados de professores agredirem o então terminalmente adoentado governador tucano Mário Covas, comemorou a agressão dizendo que os adversários do PT tinham de apanhar “nas urnas e nas ruas”.
Que, recentemente, o ex-condenado Luiz Inácio Lula da Silva tenha elogiado um vereador petista por tentar assassinar um adversário empurrando-o contra um ônibus em movimento é apenas um corolário necessário dessa mesma mentalidade, que celebra como heróis da causa os agressores e os criminosos politicamente alinhados.
Como mostrei em A Corrupção da Inteligência, a psicologia da esquerda revolucionária é sempre a da fera acuada, daí sua ação política ser necessariamente impiedosa. A luta dessa esquerda — seja ela física, política ou seja no terreno das ideias — é sempre uma “luta à muerte”, para falar como Guevara. Toda vez que age, a esquerda imagina reagir. Mesmo quando exerce o poder das maneiras as mais totalitárias e brutais, vê-se invariavelmente como vítima de um poder anterior que justifica suas ações. E, ainda que viole sistematicamente os princípios mais elementares de um estado democrático, crê piamente (descontado o cinismo estratégico) encarnar a democracia.
Peço licença aos leitores para uma autocitação: “O sentimento de culpa — a famigerada culpa ‘judaico-cristã’, como há 300 anos maldizem os revolucionários com esgares de nojo — não integra a estrutura de consciência da esquerda, e é isso que faz com que os males políticos por ela cometidos sejam mais profundos e destruidores que os demais. Não por acaso que os comunistas tenham sido, por um lado, os principais formuladores de um discurso de indignação moral contra os males do mundo e, por outro, os maiores perpetradores desses males, brindando a humanidade com um festival de horrores de dar inveja ao próprio Satanás. Há duas coisas que o comunismo fez em escala industrial: denunciar e matar.
Ditadores da esquerda revolucionária serão sempre mais totalitários e sanguinários que os outros. Stalin e Mao Tsé-tung provaram-no inexoravelmente. Um revolucionário corrupto será sempre mais corrupto que um não revolucionário. Este último pode vir a sentir vergonha, ou mesmo saciar-se com o produto de seu crime. O esquerdista revolucionário, jamais. Pego em flagrante delito, erguerá no ar o punho cerrado e, prenhe de um orgulho patológico, experimentará, no fundo de seu ser, a emoção de lutar por justiça no instante em que corrompe. A moral deles é diferente da nossa, decretou o relativismo (i)moral de Trotski. No Brasil, os petistas cansaram de dar provas dessa ética peculiar inerente à imaginação revolucionária. Qual Raskolnikov, eles se convenceram (e convenceram a elite intelectual do país) de que, por serem excepcionalmente virtuosos, haviam forçosamente de gozar de um ‘direito ao crime’”.
É por isso que, sob a cumplicidade do partido que outrora lhe fazia oposição (dentro da democracia de fachada encenada no “teatro das tesouras”), bem como da grande maioria da imprensa e dos bem-pensantes, essa esquerda raskolnikoviana protagonizada pelo lulopetismo finge se escandalizar (ou se escandaliza autenticamente, mas de maneira histerioforme) com o “ódio” e a “violência” supostamente inaugurados no país por Bolsonaro e seus apoiadores, chegando ao ponto de desacreditar investigações policiais para concluir que a causa de todo e qualquer crime ocorrido no Brasil (como o que vitimou Marielle Franco, no Rio de Janeiro; ou Bruno Pereira e Dom Phillips, na Amazônia; ou Marcelo Arruda, em Foz de Iguaçu) é uma só: o “bolsonarismo”.
Fazem isso como projeção psicótica dos próprios desejos recalcados (e eventualmente extravasados sob forma “artística”). Fazem-no para justificar a sua própria inclinação política violenta e intolerante, moralmente chancelada pela psicologia da fera acuada. Fazem-no, por fim, movidos por aquele “ódio do bem” que, no mundo de ponta-cabeça do portador de mentalidade revolucionária, é o suprassumo do amor, da paz e da tolerância, aquela tolerância repressiva de que falava o marxista frankfurtiano Herbert Marcuse: “Intolerância total aos movimentos [incluindo ações e palavras] da direita; tolerância total aos movimentos da esquerda”.
Revista Oeste
publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2022/07/sobre-esquerda-e-violencia-politica.html
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