por Gabrielle Bauer
Durante meus primeiros 62 anos de vida, não me lembro de ter sido chamada de egoísta idiota. Muito menos de sociopata ou de trumpista retardada. Tudo mudou quando a covid-19 aconteceu, e eu manifestei, com muita cautela, algumas preocupações sobre as políticas do lockdown. Aqui vai uma amostra do que os guerreiros do teclado usaram para me atacar:
- aproveite a sua sociopatia;
- vá lamber um poste para pegar o vírus;
- divirta-se quando estiver se sufocando na UTI;
- liste três entes queridos que você está pronta para sacrificar para a covid-19. Faça isso agora, sua covarde;
- você estudou em Harvard? Duvido. Pelo que eu sei, Harvard não aceita trogloditas.
Desde os primeiros dias da pandemia, algo bem dentro de mim — no meu âmago, podemos dizer — recuou diante das reações políticas e públicas ao vírus. Nada relacionado a isso parecia correto, saudável ou verdadeiro. Essa não era apenas uma crise epidemiológica, era uma crise da sociedade. Então, por que estávamos ouvindo apenas alguns epidemiologistas seletos? Onde estavam os especialistas em saúde mental? Os especialistas em desenvolvimento infantil? Os historiadores? Os economistas? E por que nossos líderes políticos estavam incentivando o medo, e não a calma?
As perguntas que mais me atormentavam tinham menos a ver com epidemiologia do que com ética: era justo exigir o sacrifício maior dos membros mais jovens da sociedade, que viriam a sofrer mais com as restrições? As liberdades civis simplesmente desapareceram durante a pandemia, ou precisamos equilibrar segurança pública com direitos humanos? Sem conhecer os códigos dos guerreiros on-line, presumi que a internet me permitiria entrar em “discussões produtivas” sobre essas questões. Então me conectei, e o resto foi histeria.
Idiota, terraplanista, aberração, Q.I. negativo… Vamos dizer que minha casca grossa nunca tinha sido tão testada.
E não era só eu: qualquer pessoa que questionasse a ortodoxia, fosse um especialista ou um cidadão comum, recebia o mesmo tratamento. Nas palavras de um médico de família, que por razões óbvias vai permanecer anônimo: “Muitos médicos, incluindo eu, junto com virologistas, epidemiologistas e outros cientistas, defenderam uma abordagem específica e o foco nos pacientes mais vulneráveis, só para serem chamados de malucos lunáticos, anticiência, antivacina, teóricos da conspiração ou outros rótulos pejorativos e pitorescos”.
No começo da história, decidi não reagir a esses insultos com outros insultos — não porque eu seja especialmente magnânima, mas porque concursos de difamação só me deixam irritada, e não é divertido passar o dia brava. Em vez disso, enfrentei o constrangimento com coragem (mas fiquei brava mesmo assim).
O Jogo da Vergonha
O impulso de constranger se impôs desde o início da pandemia. No Twitter, #covidiota entrou nos trending topics no começo da noite de 22 de março de 2020 e, no fim da noite, 3 mil tuítes tinham cooptado essa hashtag para denunciar práticas ruins de saúde pública. Quando a CBS News postou um vídeo de universitários de férias festejando em Miami, cidadãos indignados compartilharam o nome dos estudantes em suas redes sociais, acompanhados por mensagens como “não dê leitos nem respiradores a esses egoístas idiotas”.
Nos primeiros dias da pandemia, quando o pânico e a confusão reinavam, essa indignação talvez pudesse ser perdoada. Mas o constrangimento ganhou impulso e se tornou a onda do momento. Da mesma forma: não funcionou.
Como Julia Marcus, epidemiologista da Faculdade de Medicina de Harvard, comentou: “Constranger e culpar as pessoas não é a melhor maneira de fazê-las mudar de comportamento e, na verdade, pode ser contraproducente, porque faz com que elas queiram esconder o que fazem”. Na mesma linha, Jan Balkus, especialista em doenças infecciosas da Universidade de Washington, defende a ideia de que o constrangimento pode dificultar que as pessoas “reconheçam situações em que possam ter se colocado em risco”.
Se constranger os “covidiotas” por seu comportamento não resolve muita coisa, você pode ter certeza de que constranger as pessoas por agir da forma errada não vai fazer ninguém mudar de ideia. Em vez disso, nós, hereges, apenas paramos de dizer a quem nos constrange o que estamos pensando.
Vale-Tudo
Fui essa pessoa por dois anos. Sorri educadamente enquanto desviava dos insultos. Para deixar meus interlocutores tranquilos, eu prefaciava minhas opiniões heterodoxas com avisos como “Não gosto de Trump tanto quanto você” ou “Que fique registrado, eu tomei as três doses da vacina”.
Uma análise da Johns Hopkins concluiu que os lockdowns reduziram a mortalidade por covid-19 em uma média de 0,2%
Só agora eu me permito abandonar a bajulação e ser franca.
A todo mundo que me atormentou por questionar o fechamento da civilização e chamar atenção para os danos causados aos jovens e aos mais pobres: podem pegar suas reprimendas, sua pose científica, seu moralismo insuportável e ir para o inferno. Todos os dias, novas pesquisas desidratam seus pronunciamentos arrogantes.
Vocês me disseram que, sem os lockdowns, a covid-19 teria aniquilado um terço do mundo, assim como a peste negra dizimou a Europa no século 14. Na verdade, uma meta-análise da Johns Hopkins concluiu que os lockdowns na Europa e nos Estados Unidos reduziram a mortalidade por covid-19 em uma média de 0,2%.
Além do mais, muito antes desse estudo, já tínhamos boas evidências de que qualquer coisa que não fosse o lockdown da China, que lacrou todas as portas, não faria muita diferença. Em um artigo de 2006, um grupo de pesquisa da OMS afirmou que “a notificação obrigatória dos casos e o isolamento dos pacientes durante a pandemia de influenza de 1918 não impediram a transmissão do vírus e não foram práticos”.
Vocês me disseram que a interação social era uma vontade, não uma necessidade. Bem, sim. O mesmo vale para boa comida. Na verdade, o isolamento social mata. Como relatado em um artigo de setembro de 2020 publicado na Cell, a solidão “pode ser a ameaça mais forte à sobrevivência e à longevidade”. O artigo explica como o isolamento social reduz o desenvolvimento cognitivo, enfraquece o sistema imunológico e coloca as pessoas em risco de distúrbios relacionados ao abuso de substâncias. E não que não soubéssemos disso antes da covid-19: em 2017, uma pesquisa de Julianne Holt-Lunstad, professora da Universidade Brigham Young, determinou que o isolamento social acelera a mortalidade tanto quanto fumar 15 cigarros por dia. Suas descobertas estamparam a primeira página de veículos de mídia do mundo todo.
Vocês me disseram para eu não me preocupar com os efeitos das restrições da covid-19 nas crianças, porque elas são resilientes — além do mais, tinha sido muito pior nas duas guerras mundiais. Enquanto isso, o Reino Unido teve um aumento de 77% de encaminhamentos pediátricos para questões como automutilação e ideias suicidas durante um período de seis meses em 2021, em comparação com um período similar em 2019. E, se isso não chocar vocês, uma análise do Banco Mundial estima que, em países de baixa renda, a retração econômica que se seguiu às políticas de lockdown levou 1,7 criança a perder a vida para cada fatalidade por covid-19 que foi evitada.
Vocês me disseram que pessoas vacinadas não transmitem o vírus, a partir da declaração de Rachel Walensky, diretora da CDC, no começo de 2021, e todos sabemos como isso ficou datado.
Vocês me disseram que eu não tinha motivos para questionar o que os especialistas em doenças infecciosas estavam nos dizendo. (Estou parafraseando. O que vocês de fato me disseram foi: “Que tal cuidar da sua vida e calar a boca?”.) Tive minha redenção com o dr. Stefanos Kales, também da Faculdade de Medicina de Harvard, que alertou para os “perigos de entregar as políticas públicas e as recomendações de saúde pública a pessoas cuja carreira está exclusivamente voltada para doenças infecciosas”, em uma entrevista recente para a CNBC. “A saúde pública é um equilíbrio”, disse ele. De fato é. Em um livro de 2001 chamado Public Health Law: Power, Duty and Restraint (Direito de Saúde Pública: Poder, Dever e Restrição), Lawrence Gostin defendeu mais avaliações sistemáticas dos riscos e dos benefícios de intervenções na saúde pública e uma proteção mais robusta nas liberdades civis.
Então, sim. Estou chateada, e esse grupo com dedo em riste me deixou tão alienada que tive de procurar outras tribos. Mas, nessa busca, fui relativamente bem-sucedida. Encontrei mais espíritos afins do que poderia imaginar na minha cidade, Toronto, e no mundo todo: médicos, enfermeiras, cientistas, fazendeiros, músicos e donas de casa que compartilham meu incômodo em relação à sua arrogância. Epidemiologistas também. Essas pessoas ótimas me impediram de enlouquecer.
Então, obrigada. Agora saiam da minha frente.
Gabrielle Bauer divide seu tempo entre escrever livros, artigos e materiais clínicos para profissionais de saúde. Ela recebeu seis premiações nacionais de jornalismo na área de saúde. Bauer é autora de Tokyo, My Everest, co-vencedor do Canada-Japan Book Prize, e Waltzing the Tango, finalista do prêmio criativo de não ficção Edna Staebler
Revista Oeste
publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2022/05/o-constrangimento-em-detrimento-da.html
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