por Sílvio Navarro
Quase uma década depois da tragédia, quatro acusados são julgados pelo incêndio da Boate Kiss. O Poder Público, mais uma vez, não está no banco dos réus
Nove anos depois, muitos moradores da cidade gaúcha de Santa Maria ainda não têm coragem de subir a ladeira da Rua dos Andradas, na região central, onde resistem ao tempo os escombros de uma das piores tragédias do país. Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, 242 seres humanos, quase todos jovens, morreram carbonizados na Boate Kiss.
De uma lista de 28 pessoas responsabilizadas pela polícia na época, quatro finalmente começaram a ser julgadas na última quarta-feira, 1º de dezembro, em Porto Alegre. O júri popular ainda pode levar dez dias, transformando-se no mais longo da história do Judiciário gaúcho. São elas: Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, e Mauro Londero Hoffmann, o Maurinho, donos da casa noturna; Marcelo de Jesus dos Santos, o músico que tocava naquela noite, e Luciano Augusto Bonilha Leão, seu auxiliar.
Eles respondem por 242 homicídios por dolo eventual — quando se sabe que sua conduta pode causar a morte e mesmo assim a pratica — e 636 tentativas de homicídio — referente ao número de feridos que sobreviveram. O processo tem 20 mil páginas. A data do julgamento foi fixada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) apenas em abril deste ano, e a escolha dos sete jurados — seis homens e uma mulher —, definida em novembro.
Até agora, os únicos que pagaram por seus crimes foram três bombeiros — condenados por um tribunal militar —, que já cumpriram as penas. Os demais investigados não foram denunciados pelo Ministério Público ou tiveram os casos remetidos para varas cíveis e administrativas, o que fez com que caducassem.
Sucessão de equívocos
O horror ocorrido em Santa Maria é o resultado da soma de uma sucessão de equívocos. Tudo estava errado naquela noite. Primeiro, a superlotação: mais de mil pessoas entraram na discoteca, embora laudos periciais estipulassem em 690 a capacidade máxima “no limite”. Os jovens estavam amontoados na pista.
O incêndio começou por volta das 2h30 da madrugada, quando Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda, sacou um Sputnik (sinalizador usado em arquibancadas de estádios de futebol). Quem comprou o artefato foi Luciano Augusto Bonilha Leão, também integrante da banda. Segundo a polícia, o dono da loja teria alertado que não o usasse em ambientes fechados, mas a diferença de preço falou mais alto: o foguete adequado custava R$ 50. A outra opção saía por R$ 2,50 cada uma. A defesa dele vai negar essa informação no júri.
Do alto do palco, o vocalista acendeu o artefato enquanto cantava um dos hits daquele verão, Amor de Chocolate, do cantor Naldo. Ao “jogar o clima lá no alto”, como diz o refrão da música, foi questão de segundos para que as labaredas chegassem ao teto forrado de espuma inflamável — o material era à base de poliuretano, que produz gás cianeto, extremamente tóxico. Era o começo de uma carnificina sem precedentes.
Diante dos gritos e do corre-corre, os seguranças espalhados pela boate tomaram decisões difusas, evidenciando a falta de comunicação interna. Os homens que estavam na boca do palco, assim como a banda, buscaram os extintores de incêndio. Nenhum estava funcionando. Já o grupo encarregado de controlar a saída, imaginando se tratar de uma briga generalizada, trancou as portas para evitar o desfalque no caixa — só era liberado quem tivesse o carimbo de “pago” na comanda. Os clientes ficaram presos dentro de uma caixa de fumaça escura, derretendo em chamas, com gente sendo pisoteada. Quem conseguiu atravessar o bloqueio ainda encontrou barras de ferro com 1 metro de altura, instaladas para organizar as filas de chegada.
“Duas pessoas tentaram me tirar, mas tinha gente em cima de mim. Eu me agarrei nas penas de uma pessoa e só assim conseguiram me puxar”
O teto rebaixado de forma irregular para abafar o som e não incomodar os vizinhos da Kiss se despedaçou e o fogo começou a pingar do alto. Sem visibilidade, uma vez que a iluminação de emergência estava queimada, parte da multidão ainda errou a saída e foi parar dentro dos banheiros. Nos dias seguintes, dezenas de corpos foram encontrados empilhados ao redor dos vasos sanitários, numa tentativa desesperada de escalar as paredes até as minúsculas janelas — também bloqueadas com alvenaria pelo lado externo para abafar ruídos. As imagens de moradores tentando arrebentar as paredes a marretadas, exibidas à exaustão em telejornais, chocaram o mundo.
Havia mais. A Kiss não estava equipada com os chamados sprinklers (chuveiros automáticos), acionados ao menor sinal de gás quente. O Corpo de Bombeiros tampouco tinha máscaras suficientes para um resgate daquele tamanho. Há diversos relatos de sobreviventes sobre voluntários que se arriscaram a entrar para buscar familiares e amigos apenas com uma camiseta molhada enrolada no rosto — muitos não voltaram.
Os verdadeiros criminosos
Grande parte da responsabilidade — senão a maior — pela tragédia de Santa Maria é do Poder Público. Foi um caso agudo da corrupção à brasileira: um fiscal pede propina ao proprietário do estabelecimento, a autoridade faz vista grossa e “para tudo dá-se um jeitinho” neste país. Ou seja, os verdadeiros responsáveis não estão no banco dos réus no Rio Grande do Sul.
A discoteca funcionava de forma irregular, com alvarás vencidos e documentação escassa — chegou a ser multada seis vezes, mas jamais foi fechada. Nesse caso, não houve só descaso do Corpo de Bombeiros, mas também da prefeitura.
Cezar Schirmer (MDB), prefeito de Santa Maria à época, não gosta de falar sobre o caso. Foi eleito vereador de Porto Alegre em 2020 e atualmente é secretário de Planejamento da capital. Segundo jornais gaúchos, deve buscar um voo político maior na próxima eleição. O último inquérito contra ele sobre a concessão de alvarás e fiscalização foi arquivado há cinco anos, assim como investigações na Câmara de Vereadores. Schimer não foi responsabilizado por nada.
(Em 2004, um episódio similar ocorrido na Argentina, na boate República Cromañón, em Buenos Aires, deixou 194 mortos. A causa também foi a pirotecnia em ambiente fechado e a corrupção de fiscais. O prefeito da capital, Aníbal Ibarra, cotado para suceder a Néstor Kirchner na Casa Rosada, sofreu impeachment.)
Diante de uma catástrofe como essa, um dos primeiros agentes a entrar em cena, tradicionalmente, é o Ministério Público. Mas até isso em Santa Maria estava errado. Pouco tempo depois do incêndio, familiares e amigos das vítimas espalharam cartazes pelas ruas com o rosto do promotor Ricardo Lozza. Furioso, ele conseguiu liminares na Justiça para retirar os papéis e ainda processou os pais dos mortos.
Lozza foi o responsável pelo “termo de ajuste de conduta” (TAC) para manter a boate funcionando, ainda que cheia de irregularidades em questões de segurança e isolamento acústico. O teto, por exemplo, sofreu reformas. E o Ministério Público chancelou um acordo entre os donos e a prefeitura para não ter problemas.
A Kiss era uma das principais atrações do município, frequentada pelos alunos da Universidade Federal de Santa Maria. Na fatídica noite, havia festas dos cursos de Veterinária, Agronomia e Zootecnia. O local também era destino para as horas de folga dos jovens militares da base da Aeronáutica. A casa noturna estava no auge.
Não existe fim
Sobre os quatro réus, é possível que sejam sentenciados a pena em regime fechado nos próximos dias. Em 2013, chegaram a ficar quatro meses presos.
A Gurizada Fandangueira acabou naquela noite de janeiro de 2013. Os dois integrantes da banda, o vocalista e seu auxiliar, levam vidas modestas. O primeiro faz bicos como azulejista. Sua mulher afirmou recentemente ao portal R7 que se tornou “uma pessoa assustada”, que sobrevive com a ajuda financeira de familiares e sai muito pouco de casa. O segundo trabalha como DJ em festas de formatura e teve empregos recusados ao ser reconhecido na cidade.
Os dois empresários tampouco voltaram a ter negócios vultuosos. Kiko tentou se enforcar com a mangueira de um chuveiro no hospital. Depois de solto, abandonou o glamour das colunas sociais da região e hoje vende pneus. Maurinho deixou o Estado e recomeçou a vida em Santa Catarina — ele jamais deu entrevistas nem se deixa fotografar.
Desde a última quarta-feira, um telão foi instalado para transmitir o júri na Paça Saldanha Marinho, no centro da cidade, onde fica uma tenda da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria. Está lá estampado o rosto dos universitários mortos, lado a lado, na calçada.
Há anos, o número “242” pode ser visto rabiscado em quase todos os cantos da cidade. Nesta semana, não foi diferente. Foi colocado um enorme banner branco para que os moradores e sobreviventes escrevessem mensagens — muitos convivem com sequelas físicas e psicológicas.
Santa Maria nunca esqueceu os mortos da Kiss. E nunca esquecerá.
Revista Oeste
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