Josias Teófilo cumpre papel negligenciado por imprensa e academia: interpretar o recado das ruas, que nos levou de 2013 a Jair Bolsonaro
Fábio Matos, Revista Oeste
“A gente pedia para ele dar uma nota de como estava. Ele dizia: cinco, seis, sete, estava quente ainda. Quando ele chegou ao hospital, na Santa Casa, foi levado direto à enfermaria e começou a esfriar. […] Eu cheguei na sala antes dele. Ele estava com os braços amarrados, urrava de dor, falava da filha o tempo todo… Vendo aquilo, eu comecei a perceber que… Será que meu pai vai?”
O relato acima é de Carlos Bolsonaro, visivelmente emocionado, com a voz embargada e quase às lágrimas. Arredio à imprensa, ele conversou com o cineasta Josias Teófilo, diretor de Nem Tudo Se Desfaz, documentário em exibição em São Paulo e outras capitais brasileiras, mas não falou investido do cargo de vereador pelo Republicanos do Rio, mas como filho mais ligado a Jair Messias Bolsonaro. O “zero dois” descreve, com riqueza de detalhes inédita, como foram os momentos seguintes à facada sofrida pelo então candidato à Presidência da República no dia 6 de setembro de 2018, em Juiz de Fora (MG), durante um ato de campanha. Esse é o ponto alto do novo filme de Teófilo, diretor do premiado O Jardim das Aflições (2017).
Nem Tudo Se Desfaz, no entanto, vai além, muito além de Bolsonaro. Alternando imagens recentes e trechos de clássicos do cinema dos anos 1920, entremeados por uma série de entrevistas com intelectuais, jornalistas, lideranças políticas, influenciadores e ativistas, o documentário joga luz sobre o turbilhão político que abalou o Brasil na última década.
Tendo como fio condutor a narração do ator e dublador Reynaldo Gonzaga — dono da voz que enunciava o slogan “Brasil, um país de todos” na propaganda oficial dos governos do petista Luiz Inácio Lula da Silva —, o filme traça um paralelo entre alguns dos momentos decisivos da vida nacional entre 2013 e 2018: as chamadas Jornadas de Junho, a eclosão da Operação Lava Jato, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, a prisão de Lula e o surgimento de Bolsonaro como personificação do espírito “revolucionário” e da contestação ao establishment.
Coube a Teófilo cumprir o papel que a grande imprensa e a academia não quiseram ou não tiveram capacidade de executar: interpretar, sem preguiça ou preconceitos, o movimento das massas que tomou as ruas do país e passou a reivindicar pautas diversas, participando ativamente da vida política do Brasil. Enquanto a intelligentsia tupiniquim se enclausurava nas próprias bolhas e desqualificava a multidão em verde e amarelo nas ruas (como continua fazendo, vide as manifestações de 7 de Setembro em apoio a Bolsonaro), o cineasta pernambucano de 34 anos foi a campo para observar, estudar e compreender o fenômeno.
“O grande tema do filme é o movimento das massas. Uma das principais referências da pesquisa que eu fiz antes de rodar o filme é o livro Massa e Poder, do Elias Canetti [Editora Companhia de Bolso, 2019]. O filme acompanha como as massas se movimentam. Isso é muito mais importante do que qualquer questão partidária. Não diria que é um filme político. É um filme histórico”, afirmou Teófilo em entrevista a Oeste publicada no dia 15 de setembro.
2013-2018
Com algumas imagens inéditas das manifestações de junho de 2013, Nem Tudo Se Desfaz mostra como e por que as jornadas que tiveram início a partir de protestos organizados pelo hoje já esquecido Movimento Passe Livre (MPL) — contra o aumento de 20 centavos no preço da passagem de ônibus em São Paulo — rapidamente se tornaram campo fértil para a participação de uma massa insatisfeita com a (falta de) qualidade dos serviços públicos, os escândalos de corrupção, a violência e outras mazelas do país.
Em um curto espaço de tempo, as manifestações cresceram exponencialmente, ganharam adesões pelo Brasil e fugiram do controle da esquerda mainstream do PT, alinhada aos interesses do governo Dilma. O então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e o prefeito Fernando Haddad (PT) aparecem em uma entrevista coletiva na qual revogam o aumento e pedem diálogo e compreensão das massas — a imagem pode ser interpretada como um embrião do que se veria anos depois, uma simbiose entre tucanos e petistas, adversários históricos e hoje mais próximos do que nunca. Cinco anos depois, tanto Alckmin quanto Haddad fracassaram nas urnas.
À medida que as multidões avançavam, a classe política e sua representante número um, a presidente da República, se sentiam cada vez mais acuadas. Imagens históricas de centenas de manifestantes na Praça dos Três Poderes ameaçando invadir o Congresso Nacional são quase o símbolo do fim — e do início — de uma era.
Um dos méritos de Teófilo em Nem Tudo Se Desfaz é não ter se limitado ao ponto de vista dos conservadores sobre a realidade política do Brasil daquele momento. Dois dos principais entrevistados no filme são notórios representantes do pensamento da esquerda: o escritor, historiador e professor de literatura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) João Cezar de Castro Rocha e o crítico cultural Idelber Avelar. Segundo este último, a total “incapacidade do governo Dilma de oferecer todas aquelas respostas” à sociedade só fez amplificar a magnitude das manifestações e, naturalmente, tornar a situação do governo petista insustentável.
Nem Tudo Se Desfaz também relembra o surgimento e o avanço da Lava Jato, entre 2014 e 2015, e seus efeitos atômicos sobre o status quo — atingindo praticamente todos os grandes partidos políticos do país e mandando para a cadeia poderosos empreiteiros e barões do empresariado. O impeachment de Dilma, comemorado nas ruas e apoiado pela esmagadora maioria dos brasileiros, não saciou as massas. Lula, que havia deixado o Palácio do Planalto com 80% de aprovação popular, foi preso por corrupção e levado à carceragem da Polícia Federal (PF) em Curitiba diante dos holofotes do Brasil e do mundo. Michel Temer, o presidente-tampão, também teve seu nome implicado em investigações da Lava Jato, o que desmoralizou ainda mais a instituição da Presidência da República. O castelo de cartas do sistema desmoronava.
A nova direita
A campanha presidencial de 2018 foi um fenômeno muito peculiar na história brasileira. Enquanto nove de cada dez analistas políticos nem sequer consideravam a possibilidade de vitória de Jair Bolsonaro — representante do baixíssimo clero da Câmara, sem partido forte nem tempo de propaganda na TV — e apostavam na velha polarização entre PT e PSDB (o tucano Alckmin alinhavara o maior leque de alianças partidárias, inclusive com legendas do centrão, e detinha um latifúndio no horário eleitoral), Bolsonaro rodava o país e era recebido por multidões ensandecidas nos aeroportos por que passava.
Como bem destacou João Cezar de Castro Rocha em um de seus depoimentos no filme, “as massas hoje são massas digitais”. A Oeste, Teófilo corrobora essa interpretação: “[O filme] Mostra como a atuação das massas no campo político começou a ser protagonista da história brasileira a partir de 2013. Isso não parou. Isso veio para ficar, sejam as massas digitais, sejam as massas físicas, que agora se intercambiam. As manifestações são convocadas pelas redes sociais. Elas vão para o ‘ao vivo’, as pessoas se encontram, e depois elas repercutem digitalmente”, afirma.
Em Nem Tudo Se Desfaz, o espectador tem contato com a máquina de produção de memes que marcou a atuação do campo conservador nas redes sociais nos últimos anos, em especial a partir da campanha de 2018. Sem espaço nos grandes veículos de comunicação, que ignoraram solenemente o que se passava nas redes, grupos identificados com a direita no espectro político-ideológico passaram a difundir, em larga escala, ideias propagadas por intelectuais como Olavo de Carvalho. Detalhes sobre a criação da página Bolsonaro Zuero e como ela alavancou o nome do “mito” nas redes sociais são trazidos à baila no documentário. Depois de perderem o monopólio das ruas, as esquerdas eram superadas também no humor, na galhofa, nos memes.
Faz falta o depoimento do próprio Jair Bolsonaro, “o herdeiro do movimento revolucionário de 2013”, nas palavras de Teófilo a Oeste. Um tête-à-tête com o presidente da República teria enriquecido o documentário, embora sua ausência não faça com que Nem Tudo Se Desfaz deixe de ser o que é na essência: um registro histórico sobre um período negligenciado por historiadores, intelectuais e jornalistas, seja por descuido, desinteresse, seja por má-fé.
Quatro anos depois do sucesso e das intermináveis polêmicas causadas por O Jardim das Aflições, Josias Teófilo se mostra um diretor de cinema mais maduro em Nem Tudo Se Desfaz. Ele tem lado e não o esconde, mas nada disso contamina o trabalho que se propõe a fazer. Não é sobre os 20 centavos. Não é sobre Bolsonaro. É sobre o Brasil de ontem e de hoje, e como chegamos até aqui. É cinema, e cinema dos bons.
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