Por Leonardo Corrêa & Mário Conforti
As políticas de ações afirmativas, principalmente aquelas baseadas em critérios raciais, tiveram um impacto significativo nos debates sobre igualdade e justiça social. Originalmente, essas políticas buscavam remediar a discriminação histórica e promover oportunidades para grupos marginalizados. Como bem destacado pelo professor Denis Lerrer Rosenfield, “a igualdade de oportunidades e a igualdade civil foram conquistas da 'direita', e não da 'esquerda'”. No entanto, as tentativas recentes de promover uma igualdade de resultados frequentemente ignoram o mérito individual e podem perpetuar divisões artificiais.
Embora o tema seja sensível para muitos, recentemente as discussões sobre o assunto e decisões judiciais relevantes parecem indicar que, nos Estados Unidos, as ações afirmativas baseadas em critérios raciais chegaram no limite do aceitável à luz do princípio da igualdade. É inegável as diferenças entre as sociedades norte-americana e brasileira, especialmente na formação destas duas “jovens” repúblicas, mas, igualmente, não se pode negar que ambas estão inseridas em um mesmo contexto de civilização ocidental, o que as aproxima em termos de valores e princípios fundamentais para ambas.
Além disso, as ações afirmativas surgiram nos Estados Unidos na esteira do movimento em defesa dos direitos civis iniciado na década de 1950 naquele país. Ou seja, o tema é debatido pela sociedade norte-americana há, pelo menos, 60 (sessenta) anos, enquanto, aqui no Brasil, as ações afirmativas só tiveram início em idos dos anos 2000, vindo a ser reguladas apenas em 2012 pela Lei nº 12.711. Por isso, mostra-se relevante analisar o atual estágio das discussões sobre políticas afirmativas com base em critérios raciais nos Estados Unidos, para que possamos refletir sobre o desenvolvimento do assunto na sociedade brasileira.
Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, o ponto central de crítica às ações afirmativas baseadas em critérios raciais é que, em muitos casos, essas políticas não visam eliminar a discriminação de forma equitativa, mas sim criar novas formas de exclusão, tratando grupos raciais de maneira diferenciada sem uma base sólida e contemporânea para justificar tais intervenções. Como afirmou o Chief Justice John Roberts, no caso emblemático Parents Involved in Community Schools v. Seattle School District: “A maneira de acabar com a discriminação com base na raça é parar de discriminar com base na raça”. Essa frase capta a essência de que a neutralidade racial deve ser promovida, tratando todos igualmente, independentemente de sua origem.
Como tratado por George R. La Noue, o grande problema com as políticas de preferências raciais é a falta de justificativa clara para o uso de raça como critério determinante na distribuição de benefícios econômicos ou contratos públicos. Segundo o autor, para que tais políticas resistam ao escrutínio judicial, deve haver uma justificativa concreta e baseada em evidências de que a discriminação contemporânea está em andamento e de que a política proposta é o remédio mais adequado.
Em artigo recente, La Noue aborda a evolução da aceitabilidade das ações afirmativas com base em critérios raciais pelas Cortes norte-americanas. Com relação à adoção de tais políticas em compras governamentais, La Noue cita como referência o caso City of Richmond v. Croson, julgado pela Suprema Corte dos EUA em 1989[1]. A decisão estabeleceu que as políticas de preferências raciais em contratos públicos devem passar por um rigoroso escrutínio judicial (strict scrutiny) e precisam de justificativas claras de discriminação específica e contemporânea para serem consideradas constitucionais. Do contrário, o uso de preferências raciais generalizadas, sem tal especificidade, falha em atender a essas exigências e, por isso, se torna inconstitucional.
Outro ponto crucial que enfraquece as políticas de ações afirmativas com base em critérios raciais é a fragilidade dos estudos de disparidade utilizados para defender tais políticas. Denis Lerrer Rosenfield alerta que as tentativas de corrigir desigualdades por meio de categorias identitárias, como a raça, podem perpetuar uma visão distorcida de igualdade, criando uma “aparência de igualdade” e não promovendo, de fato, oportunidades iguais.
Como La Noue ressalta em seu artigo, muitos estudos de disparidade não são realizados com rigor suficiente para justificar políticas que favorecem certos grupos raciais. Em vez disso, esses estudos frequentemente oferecem conclusões vagas sobre disparidades sem levar em conta variáveis importantes, como a qualificação, disposição e capacidade das empresas para concorrer aos contratos – no âmbito das compras governamentais. Isso resulta em uma política que parece promover equidade, mas na verdade cria distorções ao oferecer vantagens a empresas que podem não estar verdadeiramente preparadas ou em desvantagem por conta de discriminação.
A prática de usar disparidades estatísticas como justificativa para políticas de preferências raciais também foi enfraquecida por decisões recentes dos tribunais norte-americanos. Como no caso Vitolo v. Guzman[2], os tribunais começaram a exigir que as políticas raciais se baseassem em evidências concretas de discriminação intencional, e não em disparidades estatísticas. A estatística, por si só, não demonstra a causa da discriminação, e sem uma análise causal sólida, essas políticas acabam sendo vistas como uma forma de discriminação racial invertida.
As recentes decisões judiciais — incluindo o caso Students for Fair Admissions[3], que invalidou as preferências raciais em admissões universitárias, e o caso Ultima Services Corporation v. U.S. Department of Agriculture[4], que desafiou o uso de preferências raciais no programa Small Business Administration (SBA) — sinalizam uma mudança no entendimento judicial sobre o uso de raça como critério. O entendimento mais recente dos tribunais norte-americanos é que qualquer política que utilize critérios raciais deve ser limitada, estreitamente adaptada a corrigir discriminações específicas e claramente definidas, e que a mera existência de disparidades estatísticas não é suficiente para justificar preferências.
Essas decisões, ainda que provenientes de Cortes norte-americanas, apontam para a necessidade de um retorno à meritocracia como critério principal na alocação de oportunidades econômicas e educacionais. O princípio de que todos os indivíduos devem ser tratados com base em suas habilidades, qualificações e esforços, e não com base em sua raça, é um fundamento constitucional que está sendo reafirmado pelos tribunais norte-americanos e que, da mesma forma, encontra amparo na Constituição brasileira.
Em um cenário jurídico cada vez mais desfavorável para políticas de ações afirmativas baseadas em critérios raciais, a meritocracia surge como a alternativa mais justa e constitucionalmente sólida. Gary Becker, em sua análise econômica sobre a discriminação, argumenta que o uso de classificações raciais para corrigir desigualdades distorce a competição e compromete a eficiência do mercado. Aplicando essa lógica ao contexto educacional e profissional, as políticas afirmativas que favorecem a raça em detrimento do mérito penalizam injustamente aqueles que não têm qualquer relação com discriminações passadas, desafiando o princípio da isonomia.
A ideia de que indivíduos devem ser avaliados e recompensados com base em seus esforços e competências, em vez de características imutáveis como raça, reflete o verdadeiro espírito da igualdade perante a lei. Preferências raciais, quando não apoiadas em evidências robustas de discriminação contemporânea, não apenas falham em promover justiça, mas também perpetuam divisões e desigualdades que essas políticas deveriam mitigar.
A Constituição brasileira protege todos os cidadãos contra a discriminação, e qualquer política que conceda benefícios ou imponha ônus com base em raça, sem justificativa clara e específica, é contrária a esse princípio. A história de Machado de Assis, o maior escritor da língua portuguesa, é um exemplo de que grandes conquistas são possíveis quando se valoriza o mérito. Machado, que se destacou por seu gênio literário em uma época de grandes barreiras sociais, nos ensina que uma sociedade meritocrática oferece oportunidades reais a todos, independentemente de sua origem.
Portanto, o caminho para uma sociedade mais justa e equitativa está em promover oportunidades iguais para todos, com foco no mérito e na capacidade individual, ao invés de perpetuar políticas que reforçam divisões raciais. Assim, a verdadeira inclusão será alcançada quando todos forem tratados como indivíduos, e não como representantes de grupos raciais.
Notas:
[1] City of Richmond v. Croson, 488 EUA 469 (1989) é o caso mais importante sobre preferências raciais em contratos governamentais. Richmond, a capital da Confederação no século 19, passou por importantes mudanças demográficas e políticas no século 20. Seu conselho municipal tornou-se majoritariamente afro-americano e aprovou uma lei exigindo que trinta por cento de todos os dólares de compras municipais fossem reservados para empresas pertencentes a minorias. A J.A. Croson, uma empresa com sede em Ohio, ganhou um pequeno contrato para instalar mictórios na prisão da cidade, mas se forçada a subcontratar empresas minoritárias, teria perdido dinheiro. O desafio de Croson a esse requisito, apoiado pela Associated General Contractors of America, rendeu a decisão que estabeleceu o padrão para avaliar todos os programas de compras preferenciais. Após uma série de apelações, a Suprema Corte concluiu que a reserva de trinta por cento da cidade para empresas pertencentes a minorias violava a Décima Quarta Emenda.
[2] Vitolo v. Guzmán, 999 F.3d 353, 361 (6º Cir. 2021).
[3] Sobre esse caso e a discussão específica sobre a constitucionalidade das quotas raciais em instituições de ensino ver, também, DEI: inclusão pela exclusão? Políticas de ações afirmativas são constitucionais? (disponível em https://mises.org.br/artigos/3430/dei-inclusao-pela-exclusao)
[4] Ultima Servs. Corp. v. U.S. Dep’t of Agric., 2:20-CV-00041-DLC-CRW, 2023 WL 4633481 (E.D. Tenn. 2023). Conforme citado por La Noue: “Em 19 de julho de 2023, acompanhando Vitolo e também incorporando SFFA, um tribunal distrital federal no Distrito Leste do Tennessee considerou inconstitucionais as preferências raciais no programa de contratação federal 8(a). De acordo com o programa 8 (a), a Small Business Administration (SBA) pode reservar aquisições em qualquer agência federal para empresas "social e economicamente" desfavorecidas. Na prática, isso significou empresas pertencentes a minorias raciais e étnicas e, de fato, a SBA manteve por muito tempo uma "presunção" de que todas as empresas pertencentes a minorias eram social e economicamente desfavorecidas. Essa presunção foi baseada em uma lista de países de origem, que não mudou em décadas. Em Ultima Services Corporation v. Departamento de Agricultura dos EUA, o tribunal decidiu que o programa carecia de um interesse convincente e não era estritamente adaptado porque não pretendia remediar a discriminação passada específica contra as empresas beneficiárias. A SBA respondeu desistindo de sua presunção e substituindo-a por um processo de inscrição de ensaio individual supostamente neutro em termos de raça - semelhante ao que a SFFA sugere que pode ser aprovado na reunião constitucional de admissões em faculdades.)
PUBLICADAEMhttps://mises.org.br/artigos/3478/acoes-afirmativas-baseadas-em-criterios-raciais-ainda-se-justificam
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