Adriano Alves-Marreiros
Esta semana, precisamos trazer de volta esta crônica: Mais atual que nunca!!! Do saudoso Tribuna Diária...)
“– Ah, a música – disse Dumbledore, secando os olhos. – Uma mágica que transcende todas que fazemos aqui!”
J.K. Rowling
Prosseguimos com nossa série de artigos de inspiração na Música. Com uma abordagem crítica da bandidolatria, do coitadismo penal e expondo a guerra cultural, passamos, agora, à famosa “O meu guri”. Embora muitos vislumbrem a obra como um relato de alienação, da mãe que estaria cega por amor ao filho e nada vê, vamos mostrar uma análise bem mais... desagradável do assunto.
Chico Buarque foi um grande autor como uma imensa produção de obras primas – mesmo sendo um autor muito ideológico, já que a forma prevalece na análise da qualidade lírica – e boa parte dessas obras é essencialmente de cunho político com uma visão extremamente parcial. A que abordaremos é claro instrumento de atuação na guerra cultural, neste caso, romantizando o bandido e justificando seus crimes. Claro: vai parecer que algumas coisas são repetições do artigo anterior (faroeste caboclo)[1], mas devo explicar a você – são mesmo!!! Esta música não foge da proposta anterior: se “Maria Lúcia era uma menina linda, o coração dele pra ela o santo Cristo prometeu” e fomos manipulados pela redenção do bandido por meio da paixão homem-mulher, neste nos manipularão por meio da nossa sensibilidade ao amor de mãe.
Enfim, a música perdeu muito quando Chico perdeu a mão há uns 30 anos: nestas 3 décadas mais recentes pouco produziu de relevante, exceto opiniões políticas também baseadas na ficção.
O meu guri: tentando romantizar a figura do criminoso, Chico acaba escancarando o cinismo da mãe de bandido...
Nos anos 80, época em que essa música foi lançada, havia muita filosofia e esoterismo circulando em todos os círculos: na maior parte de origem duvidosa ou distorcida. Lembro que que disseram que a de Lao Tsé – o TAO— pregava que “Antes de se estudar o Tao o mar é mar e a montanha é montanha. Quando se está estudando o Tao, o mar deixa de ser mar e a montanha deixa de ser montanha. Mas quando se conclui o estudo: o mar volta a ser mar e a montanha volta a ser montanha”. Pode até ser falsificação barata e Lao jamais ter dito isso, mas o fato é que isso aconteceu comigo quanto a essa música: primeiro achei que era uma defesa cínica dos bandidos, apelando para o sentimentalismo. Depois achei que era apenas a expressão da ingenuidade da mãe, cega por seu amor. Mas finalmente vi que era mesmo uma defesa cínica dos bandidos: e no contexto da guerra cultural, tentando se aproveitar do amor do brasileiro por um coitadinho...
Claro que a narração tinha que ser genialmente em primeira pessoa, para obrigar você a se colocar no lugar dela, e tinha que se começar pelas dificuldades da mãe solteira (já que “Não era o momento dele rebentar” e que ele “já foi nascendo com cara de fome”. Isso já nos induzindo a lembrar que sua vida foi difícil desde o nascimento e que apenas isso foi a causa invencível de sua vida dedicada ao crime, apesar do que já dissemos no artigo anterior sobre vizinhos na mesma situação, parentes, e tantas outras pessoas filhas de mães solteiras e que são trabalhadores honestos. Aliás, a própria narradora (a mãe) nada fala sobre ter praticado assaltos e outros crimes para criá-lo.
Na “filosofia” de R$ 1,99[2] anos 80, é claro que teremos uma “pérola de otimismo”[3] dele, do “meu guri” , que “um dia me disse que chegava lá”. Vejamos, então, até onde Chico pretende chegar para nos convencer que somos culpados da opção do “meu guri” pelo crime.
Claro que o criminoso é um trabalhador que “chega suado e veloz do batente”, ganhando o pão com o suor do seu rosto, aliás, não só o pão, mas também “Tanta corrente de ouro, seu moço, que haja pescoço pra enfiar” sugerindo que provavelmente outras pessoas também suaram: suaram frio com o “trabalho” do “meu guri”. Aliás, é justamente a partir de alguns frutos de seu trabalho – “Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro, chave, caderneta, terço e patuá, um lenço e uma penca de documentos, pra finalmente eu me identificar” que não restam dúvidas de que a mãe não era “cega de amor a ponto de não ver o óbvio”, como o personagem Tavares do Jô Soares[4], a coisa se torna tão evidente que temos que dar à coisa o seu nome: CINISMO! O mesmo cinismo que gera aquelas entrevistas em que mães e parentes de traficantes, assassinos, membros de facções criminosas e corruptos sempre exaltam seus filhos como trabalhadores honestos injustamente presos pela polícia “opressora” ou perseguidos pelos “malignos” membros do Ministério Público e Juízes “fascistas” mancomunados.
E mostrando que é um trabalhador incansável e que diversifica, “Chega no morro com o carregamento, pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador”. A vida é dura e não se pode perder oportunidades, mesmo quando isso significa que a vida é ainda mais dura pra quem “perdeu, play”: as vítimas de seus crimes, se é que eles ainda têm vida...
Prosseguindo no cinismo, ela quer que você pense que sua cegueira deliberada seria alienação, e busca demonstrar preocupação e fé dizendo “Rezo até ele chegar cá no alto, essa onda de assaltos tá um horror”. Reforçando o cinismo já comprovado antes e que não se importa com as pessoas prejudicadas pelo seu filho bandido: só com “meu guri”.
Aí, pra deixar você ainda mais próximo e comovido com a atitude e a profunda humanidade de um bom filho, ela te romantiza: “Eu consolo ele, ele me consola, boto ele no colo pra ele me ninar”, só esquecendo de falar de tantas mães que não podem mais consolar nem ser consoladas pelos filhos por causa de guris como o “o meu guri”. Mas elas não importam, nem meros números são, pois não fazem estatísticas com mães e pais de vítimas... Ela, sim é que é merecedora de todos os direitos, da atenção de ONGs, de ativistas, de “garantistas”, pois é mãe de um batalhador, que vai cedo labutar, como ela relata: “De repente acordo, olho pro lado e o danado já foi trabalhar, olha aí”. Que importa se, no dia seguinte de cada labuta de seu guri, OUTRA MÃE ACORDA, OLHA PRO LADO E FILHO DELA JÁ NÃO TÁ MAIS LÁ, OLHA AÍ...
Levando a dramaticidade ao ponto máximo, chegamos ao epílogo quando ele “Chega estampado, manchete, retrato, com venda nos olhos, legenda e as iniciais” referindo-se à barrinha preta que colocavam na foto do jornal para não expor o rosto de um “di menor” e às iniciais para não revelar o nome. Aí, claro que ela que ela vai reclamar das pessoas que estão criticando ou falando daquela prisão, já que, ela só vê motivo de orgulho, já que ela não se importa com mais ninguém, não se importa com a maldade de seu filho: “O guri no mato, acho que tá rindo, acho que tá lindo de papo pro ar”. Há quem ache que esses versos significariam que o bandido morreu e que a alienação da mãe, com a dor da perda, ter-se-ia tornado total, mas entendemos que é orgulho mesmo, já que ele apareceu no jornal, que seu “papo pro ar” seria aquela pose arrogante de bandido convicto de que “não vai dá nada porque sô di menor” e até porque para chegar a ponto de sua prisão aparecer na manchete do jornal, é porque ele se tornou uma bandido muito procurado e com hierarquia alta no crime... É como ela diz “Desde o começo, eu não disse, seu moço, ele disse que chegava lá”.
É, olha aí, olha “o meu guri, olha aí” porque o seu guri, vítima dele, você não vai poder olhar mais: nunca mais...
Algumas pessoas vivem cheias de EUforia,
Todas as outras vivem cheias dos egoístas
(Millôr Fernandes)
Agradeço à Fernanda, minha mulher, por algumas sugestões essenciais para o estilo. (te amo!)
Agora vou ouvir a música...
Adriano Alves-Marreiros é alguém que detesta cinismo...
[1] face
[2] Muito antes das lojas de 1,99, e nem real era: era Cruzeiro.
[3] Daria um ótimo nome de livro de autoajuda (outro ajuda?) dos anos 8º, se é que não deu...
[4]
publicadaemhttps://www.puggina.org/outros-autores-artigo/cantos-de-crime-e-desgraca:-a-realidade-nas-entrelinhas-das-musicas__18566





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