Jornalista Andrade Junior

sábado, 23 de outubro de 2021

A história de um dos cancelamentos mais absurdos de 2021

 Maria Clara Vieira, Gazeta do Povo


Dorian Abbott está longe de ser um ativista polêmico. Professor da Universidade de Chicago, o geofísico se declara “politicamente centrista”: não é um ferrenho defensor do livre mercado nem do aumento do Estado. Acredita que o problema do aquecimento global é deliberadamente amplificado por setores da esquerda, mas que nem por isso é falso ou deveria ser ignorado por conservadores (“diria que o espírito conservador pode fornecer bons motivos para lutar contra o aquecimento global”, ele escreve).


Pela relevância de suas pesquisas sobre mudança climática, Abbott foi convidado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), uma das mais importantes universidades dos Estados Unidos, para ministrar a John Carlson Lecture, uma palestra anual que acontece na cidade de Boston com o objetivo de “comunicar novos resultados empolgantes em ciência do clima para o público em geral”.


Então, no começo deste mês de outubro, o convite foi suspenso e o evento, cancelado. Não foi por conta de um político poderoso ou um empresário influente. Não foi por uma falha flagrante nas pesquisas de Abbott ou por um posicionamento forte acerca de um assunto quente, como a vacinação obrigatória contra a Covid-19. O pesquisador foi, literalmente, cancelado via Twitter, por professores e alunos da prestigiosa universidade que o classificavam como uma “piada”. Seu crime: defender que o acesso à educação superior não pode ser baseado em critérios identitários, mas no mérito.


"As universidades americanas estão passando por uma transformação profunda que ameaça inviabilizar sua missão principal: a produção e a disseminação do conhecimento. O novo regime, intitulado 'diversidade, equidade e inclusão', é executado por uma grande burocracia de administradores. (...) Este regime foi imposto de cima e nunca foi devidamente debatido. (...) As palavras 'diversidade, equidade e inclusão' parecem justas e muitas vezes são apoiadas por pessoas bem-intencionadas, mas seus efeitos são o oposto de sentimentos nobres", escreveu Abbott, em artigo para a revista americana Newsweek.


"O regime 'diversidade, equidade, inclusão' viola o princípio ético e legal da igualdade de tratamento. (...) Requer estar disposto a dizer a um candidato: 'ignorarei seus méritos e qualificações e negarei sua admissão porque você pertence ao grupo errado, e eu defini um objetivo social mais importante que justifica fazê-lo'. Ele trata as pessoas como meros meios para um fim, dando primazia a uma estatística sobre a individualidade de um ser humano", argumenta.


Não é preciso ser de esquerda para se ter contrapontos às posições de Abbott: em seu “A Tirania do Mérito”, o filósofo Michael Sandel, da Universidade de Harvard, como o discurso puramente meritocrático, quando ignora disparidades reais de oportunidade, tende a promover o aprofundamento das desigualdades. Contudo, enquadrar a posição do cientista em um extremo requer alguma desonestidade intelectual. Cabe ressaltar que, segundo uma pesquisa recente, 74% dos americanos apoia a diversidade, mas se opõe ao uso de categorias de identidade (gênero, orientação sexual e raça) para contratar ou promover pessoas.


No máximo, pode-se dizer que o cientista exagerou ao comparar os critérios de seleção identitários com o genocídio judeu promovido pelos nazistas. Neste caso, não sobrariam canceladores para contar a história: "se todas as analogias dignas de nota com o Terceiro Reich fossem motivo para cancelar conversas, centenas de professores - e milhares de colunistas de opinião - não seriam mais bem-vindos no campus", escreveu o cientista político Yascha Mounk, autor de “O Povo Contra a Democracia”.


Professor da Universidade John Hopkis, Mounk saiu em defesa de Abbott em um texto na revista The Atlantic. "O caso de Abbot é muito mais chocante (...) porque as opiniões que provocaram tal controvérsia são completamente alheias ao assunto sobre o qual ele foi convidado a palestrar", avalia o escritor.


"O MIT não rescindiu o convite a Abbot na expectativa de que ele repetisse suas opiniões sobre as ações afirmativas. Ele foi afastado de uma das universidades mais importantes do mundo que não tolera que um cientista ouse expressar opiniões não relacionadas às suas incontestáveis pesquisas e que, embora controversas, são sustentadas pela maioria do público americano”. Trocando em miúdos, é como se um médico imunologista cristão de fama internacional fosse "desconvidado" de um evento sobre a pandemia do coronavírus por ser contra o aborto.


O cancelamento da palestra de Dorian Abbott levou também o diretor do Centro de Ciências Atmosféricas de Berkeley (BASC) a pedir demissão. "O MIT cancelou uma palestra de ciências por causa das opiniões políticas do cientista convidado. Esse cientista faz um excelente trabalho em áreas de interesse do BASC (ele foi nosso convidado em 2014). Portanto, perguntei ao corpo docente do BASC se poderíamos convidá-lo para ministrar a palestra científica que ele havia preparado, reafirmando que o BASC é uma organização puramente científica, não política", narrou o físico David Romps, via Twitter.


"Eu esperava que estivéssemos de acordo que o BASC não leva em consideração as opiniões políticas ou sociais de um indivíduo ao selecionar palestrantes para seus eventos, exceto nos casos em que as opiniões dão uma expectativa razoável de que os membros de nossa comunidade seriam tratados com desrespeito. Infelizmente, não está claro quando ou se vamos chegar a um acordo sobre este ponto".


Pelo absurdo da coisa, Mounk avaliou esta decisão do MIT como um perigoso precedente “que, a menos que seja resistido com força, representará uma séria ameaça à manutenção de uma sociedade livre". Este caso, contudo, está longe de ser o primeiro - ou o mais preocupante. Neste mês de outubro, um estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Yale foi investigado pela própria universidade e intimado a se desculpar publicamente por ter usado, em um e-mail para amigos, a expressão “trap house”. O texto era um convite para um encontro informal - a expressão remete a um local parco no qual jovens se reúnem para usar drogas - e foi tomado como um “gatilho” ofensivo às comunidades negras periféricas. Na Pensilvânia, o Elizabetown College instituiu aulas só para “alunos que se auto identificam como pessoas de cor”. O tempo de resistir com força aos arroubos da religião do cancelamento, portanto, não está às portas, às custas de um “perigoso precedente”: as ameaças à liberdade são presentes e exigem coragem não só dos alunos, mas da elite acadêmica.












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