Jornalista Andrade Junior

domingo, 14 de dezembro de 2025

Mais um ‘show trial’ alexandrino,

 por Flávio Gordon Um advogado impedido de falar, um relator que ou mente ou decide sem ler, um presidente que reage a argumentos com cassetete instituciona


O que se viu nesta segunda-feira, 9 de dezembro de 2025, na continuidade do julgamento da Ação Penal 2.693 — a peça acusatória que pretende enquadrar Jair Bolsonaro e exintegrantes de seu governo como autores de uma suposta “tentativa de golpe” — foi mais um capítulo na lenta degradação das formas legais no Brasil. Um episódio que, pela coreografia e pelo propósito, lembra cada vez mais os show trials (“julgamentosespetáculo”) da velha Rússia soviética. 


O advogado de Filipe G. Martins, Jeffrey Chiquini, dirigiu-se à tribuna para fazer uma questão de ordem: pedia que o relator Alexandre de Moraes reconsiderasse a decisão arbitrária que havia proibido a defesa de exibir dois slides em sua sustentação oral. Um dos slides reproduzia uma tese jurídica antes defendida por Cristiano Zanin — hoje juiz da causa, então advogado de Lula no caso Zelotes — contra o uso de minutas apócrifas pela acusação. A defesa apenas pretendia lembrar ao tribunal a doutrina que o próprio magistrado já consagrara. 

A resposta de Moraes foi a de sempre: seca, ríspida, autoritária, com aquele sotaque típico de quem confunde função jurisdicional com big stick (“cassetete institucional”). “Impertinente”, sentenciou. “Se fossem importantes, estariam nos autos.” O detalhe, evidentemente, é que estavam. Nas páginas 268 a 271 das alegações finais. Chiquini tentou demonstrar o óbvio — ou seja, a verdade documental —. mas foi prontamente silenciado pelo presidente do julgamento, o orgulhoso comunista Flávio Dino, que, cumprindo seu papel de bedel do regime, ordenou à sua polícia política que arrancasse o advogado da tribuna. 


Eis o retrato: um advogado impedido de falar, um relator que ou mente ou decide sem ler, um presidente que reage a argumentos com cassetete institucional. Quem observa a cena e ainda acredita estar diante de um tribunal, e não de um aparato de exceção, precisa urgentemente reler os capítulos mais sombrios da história do Direito. 


Sim, a analogia é inevitável. Trata-se da velha tradição dos julgamentos-espetáculo do bolchevismo, cuja finalidade nunca foi apurar a verdade, mas demonstrar a força do Estado contra os inimigos políticos escolhidos pelo Partido. No início do século 20, ainda sob Lenin, estabeleceu-se o princípio de que a legalidade revolucionária não devia fidelidade à lei, mas à revolução. O bolchevismo inaugurou um regime em que o juiz não julgava, mas executava — isto é, cumpria o desejo político do Partido sob a máscara da técnica jurídica. 

O julgamento dos Socialistas Revolucionários, em 1922, foi paradigmático. Não havia ali investigação, contraditório ou provas: havia um roteiro. Réus previamente escolhidos, narrativas previamente escritas, e a plateia convocada para testemunhar o triunfo do Estado sobre seus “inimigos”. O processo deixou de ser um meio para apurar fatos e tornou-se instrumento pedagógico — uma aula pública de submissão.

Stalin levou essa lógica à sua forma mais pura. Shakhty (1928), MetroVickers (1933) e os grandes julgamentos de Moscou (1936-38) consolidaram a gramática definitiva do show trial: acusação fabricada, confissão obtida por coação e juiz convertido em executor de sentenças pré-escritas. Nesses julgamentos, como observa Robert Conquest, o processo penal virou teatro — mas um teatro letal, em que os atores saíam do palco direto para o porão da Lubianka.


A toga se converteu em instrumento de perseguição política e terror simbólico.  


Não é preciso grande esforço intelectual para perceber semelhanças estruturais com o que vemos hoje no Brasil. Há diferenças de grau, sem dúvida — mas não de natureza. Quando um tribunal censura provas, impede a defesa de falar, distorce o que está nos autos e cria, antes do julgamento, uma narrativa oficial que todos devem acatar, não estamos diante de “erros processuais”. Estamos testemunhando a substituição do processo penal por um instrumento narrativo — exatamente o que faziam os tribunais revolucionários soviéticos. 

O mecanismo brasileiro opera com uma lógica semelhante: fabricar a percepção pública de que há um complô antidemocrático, atribuí-lo a opositores do regime, censurar discordâncias e produzir decisões judiciais que reforcem a narrativa prévia. É uma dinâmica de retroalimentação: a narrativa justifica a decisão, e a decisão legitima a narrativa. O direito deixa de ser um limite ao poder e se converte em sua extensão. 

Vê-se, portanto, que a essência dos show trials não está na violência explícita, mas no controle absoluto do processo: quem acusa, quem julga, o que pode ser dito, o que deve ser calado. A defesa existe apenas para ser humilhada. A verdade é irrelevante. E o veredito, conhecido de antemão. 

É precisamente essa lógica que hoje se insinua nos tribunais brasileiros. Quando o relator de um processo político impede a defesa de apresentar argumentos doutrinários; quando o presidente da Corte expulsa um advogado por apontar fatos constantes dos autos; quando decisões são tomadas sem leitura prévia das peças defensivas; quando o réu é tratado não como cidadão, mas como inimigo nacional — então estamos diante de algo que já não pertence ao Estado de Direito, mas à tradição dos tribunais de exceção. 

O Brasil ingressou numa era em que, pouco a pouco, e com aplauso de boa parte das nossas elites, a toga se converteu em instrumento de perseguição política e terror simbólico. E, como mostram as lições da história soviética, nada é mais perigoso do que um Judiciário que abandona o Direito para dele se servir em vista de um projeto de poder. 
Flávio Gortdon -0 Revista Oeste


















PUBLICADAEMhttps://rota2014.blogspot.com/2025/12/mais-um-show-trial-alexandrino-por.html

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