Ubiratan Jorge Iorio
Um mito bem conhecido da GrĂ©cia antiga Ă© o de SĂsifo, considerado o mais inteligente e astuto dos mortais, mas que — certamente por julgar que essas suas qualidades o dispensariam de qualquer atitude de humildade — ousou desafiar e tentar iludir os deuses, o que lhe valeu uma punição terrĂvel: rolar eternamente com as mĂŁos, montanha acima, uma enorme pedra de mĂĄrmore. Sempre que estava perto de alcançar o cume, extenuado pela faina sobre-humana, uma força avassaladora fazia a pedra rolar novamente morro abaixo atĂ© o ponto de onde partira, jogando fora todo o imenso esforço despendido. Ă desse mito que vem a expressĂŁo “trabalho de SĂsifo”, utilizada para designar aquelas tarefas que exigem esforços repetitivos penosos e irremediavelmente fadados ao fracasso, em infindĂĄveis ciclos que alternam esperança e frustração e sem qualquer possibilidade de tentativa de recusa ou desistĂȘncia.
A economia brasileira, infelizmente, parece condenada hĂĄ bastante tempo ao sobe e desce de SĂsifo: quando tudo parece estar indo bem, a pedra rola ladeira abaixo, lĂĄ permanece por algum tempo e em seguida Ă© novamente posta a subir, para depois cair novamente. NĂŁo estou me referindo apenas aos ciclos econĂŽmicos a que todas as economias estĂŁo sujeitas, mas a um fenĂŽmeno mais amplo, cuja natureza transcende a economia e que abraça, entre outros campos, o polĂtico, o jurĂdico, o histĂłrico e o psicolĂłgico.
Do ponto de vista estritamente econĂŽmico, sabe-se hĂĄ bastante tempo quais sĂŁo as causas da formação da riqueza (ou da manutenção da pobreza) das naçÔes, a saber, a liberdade econĂŽmica, a economia de mercado e o livre comĂ©rcio. Em outras palavras, a riqueza dos paĂses depende, essencialmente, de um cenĂĄrio institucional garantidor das liberdades e dos direitos individuais, que proporcione aos agentes econĂŽmicos o exercĂcio autĂŽnomo e responsĂĄvel de seu esforço, criatividade, inventividade, trabalho e outras virtudes do espĂrito humano, diante do problema da escassez.
A diferença entre os liberais e os ditos “progressistas” Ă© que os Ășltimos, guiados pelo construtivismo racionalista, desejam que o Estado, direta ou indiretamente, se aposse do espetĂĄculo, impondo a todos o cenĂĄrio, o “script“, a rigorosa distribuição dos papĂ©is e os preços dos ingressos referentes a uma peça cujos teor e resultados sĂŁo prĂ©-concebidos e impostos a todos.
O crescimento econĂŽmico como ramo teĂłrico remonta a Adam Smith, com a publicação de A Riqueza das NaçÔes, em 1776. Seguramente, somente depois da publicação dessa obra Ă© que se começou a perceber — concordando-se ou nĂŁo com suas teses — que o desenvolvimento econĂŽmico poderia estar ao alcance de qualquer nação. A questĂŁo levantada por Smith, que — convĂ©m lembrarmos — era um filĂłsofo moral que se interessou pela Economia, Ă©, a rigor, de natureza empĂrica e pode ser sintetizada em uma importante pergunta: se o objetivo Ă© promover o bem comum e a prosperidade geral, o melhor meio Ă© encorajar os indivĂduos a fazerem os seus prĂłprios juĂzos racionais e prĂĄticos, dentro do campo de ação de cada um, ou encorajĂĄ-los ou mesmo obrigĂĄ-los a pensarem nos interesses de toda a sociedade? Sua resposta, com a qual concordam os liberais (de ontem, de hoje e de sempre) Ă© que, no conjunto, os indivĂduos sĂŁo capazes de promover o bem e a prosperidade geral com maior solidez, continuidade e efetividade pelo primeiro mĂ©todo do que pelo segundo.
Isso decorre, em parte, do princĂpio catĂłlico da subsidiaridade, que se refere ao fato de que as pessoas diretamente envolvidas em qualquer atividade estĂŁo em posição melhor para realizar julgamentos mais precisos e, portanto, para realizar as melhores açÔes do que as que “nĂŁo pegam na massa”. Os romanos condensavam este princĂpio na mĂĄxima do pintor Apeles (sĂ©c. 4 a.C.) — “ne sutor supra crepidam” (nĂŁo suba o sapateiro acima das sandĂĄlias) — pronunciada a um sapateiro que, depois de olhar um de seus quadros e criticar a pintura das sandĂĄlias, se pĂŽs a censurar outros pormenores. Uma atitude sem dĂșvida semelhante Ă do Estado, quando se propĂ”e a criar riqueza e distribuĂ-la, tarefas que nĂŁo lhe competem.
Eis, portanto, os ingredientes bĂĄsicos do processo gerador de riqueza: um cenĂĄrio individual compatĂvel com a liberdade individual e bons atores, isto Ă©, saudĂĄveis e educados, isto Ă©, donos de capital humano. O que falta para um bom espetĂĄculo? Falta apenas uma boa histĂłria, um “script” competente. A diferença entre os liberais e os ditos “progressistas” Ă© que os Ășltimos, guiados pelo construtivismo racionalista, desejam que o Estado, direta ou indiretamente, se aposse do espetĂĄculo, impondo a todos o cenĂĄrio, o “script“, a rigorosa distribuição dos papĂ©is e os preços dos ingressos referentes a uma peça cujos teor e resultados sĂŁo prĂ©-concebidos e impostos a todos. JĂĄ os liberais nĂŁo creem em histĂłrias prĂ©-concebidas: o “script” Ă© uma consequĂȘncia imprevisĂvel, baseado em performances individuais autĂŽnomas, tal como em um concerto de jazz, em que os mĂșsicos improvisam sobre um tema, respeitando sua harmonia e criando melodias e figuras rĂtmicas, e os agentes econĂŽmicos agem livremente, respeitando os acordes legais e institucionais e dando vazĂŁo Ă sua criatividade.
A evidĂȘncia empĂrica vem dando suporte Ă s teses liberais que sustentam que a ação livre, autĂŽnoma e espontĂąnea dos agentes econĂŽmicos, em um pano de fundo institucional que lhes garanta liberdade e segurança fĂsica e jurĂdica, Ă© muito mais adequada Ă formação e Ă distribuição natural da riqueza do que aquilo que Hayek chamou de “pretensĂŁo fatal”, em que algumas pessoas se consideram em condiçÔes de determinar “quanto se vai crescer”, “como se vai crescer”, “quem vai ganhar ou perder”, “quanto se vai ganhar ou perder” etc.
Voltando ao Brasil, com base nessas consideraçÔes e examinando-se as experiĂȘncias de diversos paĂses, algumas bem-sucedidas, outras fracassadas, o que pode ser feito para trilhar a estrada da riqueza, reduzir a pobreza, eliminar a misĂ©ria e, portanto, respeitar a dignidade de milhĂ”es de brasileiros? A resposta liberal Ă© bastante clara: reduzir os poderes do governo, recolocando-o no seu devido lugar, nas suas autĂȘnticas tarefas, entre as quais se inclui a indução de investimentos em saĂșde pĂșblica, educação bĂĄsica, justiça e segurança. Isso feito, os cidadĂŁos brasileiros — e nĂŁo os polĂticos e tecnocratas — Ă© que poderĂŁo dizer nĂŁo “o que devemos crescer” e sim “o que podemos crescer”, com base na iniciativa individual, exercida em clima de liberdade, responsabilidade e baixa incerteza.
Sempre que governos se arrogam o direito de comandar a economia, a pedra fatalmente termina descendo a montanha, impossibilitando a riqueza de florescer. Os exemplos sĂŁo inĂșmeros. Onde quer que se tenha colocado o Estado acima do indivĂduo, os resultados sempre foram um desfile de fracassos, e atualmente estamos vendo a confirmação disso na Venezuela e outros vizinhos da AmĂ©rica do Sul que nĂŁo aprenderam a lição.
Nos Ășltimos quatro anos, desde que a nossa economia passou a ser orientada, depois de dĂ©cadas de intervencionismos diversos, por uma visĂŁo liberal, atĂ© que SĂsifo chegou bem perto do cume: nem a pandemia, nem a guerra na UcrĂąnia, nem as perturbaçÔes energĂ©ticas foram capazes de impedir sua subida, e parecia que a maldição estava com os dias contados.
Mas, infelizmente, em menos de duas semanas, o pedregulho jĂĄ começou a cair e pode-se afirmar que, com a visĂŁo econĂŽmica do novo governo, vai continuar descendo. Medidas como a retirada de estatais do programa de privatizaçÔes, bem como a suspensĂŁo de toda e qualquer privatização; indicaçÔes de que se pretende realizar uma “desreforma” da previdĂȘncia e uma contrarreforma trabalhista para garantir fundos para os sindicatos; articulaçÔes para pĂŽr fim ao direito dos empregadores de demitirem sem justa causa; extinção da Secretaria de Desburocratização e da secretaria que acompanhava o ingresso do Brasil na OCDE; tentativa de reversĂŁo do marco do saneamento; indicaçÔes de que a ideia infeliz de criar uma moeda Ășnica para o Mercosul pode estar sendo levada a sĂ©rio; sinalizaçÔes de que o BNDES e os bancos pĂșblicos voltarĂŁo a subsidiar “campeĂ”es” escolhidos e outras, todas no sentido de aumentar o poder e a interferĂȘncia do Estado sobre as atividades econĂŽmicas.
A par disso, no plano macroeconĂŽmico, as notĂcias sĂŁo tambĂ©m preocupantes: tendĂȘncia a forte aumento de gastos correntes e da carga tributĂĄria, decorrentes da crença no Estado como promotor do crescimento; e ausĂȘncia de compromisso com o controle da inflação. Em resumo, dois venenos simultĂąneos: (1) regime fiscal deficitĂĄrio, que acarretarĂĄ dĂvida pĂșblica ascendente e juros mais altos, e (2) regime monetĂĄrio expansionista, a dizer, inflação.
Nos Ășltimos quatro anos, desde que a nossa economia passou a ser orientada, depois de dĂ©cadas de intervencionismos diversos, por uma visĂŁo liberal, atĂ© que SĂsifo chegou bem perto do cume: nem a pandemia, nem a guerra na UcrĂąnia, nem as perturbaçÔes energĂ©ticas foram capazes de impedir sua subida, e parecia que a maldição estava com os dias contados.
A economia pode ser encarada como um jogo de que participam trĂȘs jogadores: a autoridade monetĂĄria (Banco Central), a autoridade fiscal (que determina receitas e despesas pĂșblicas) e o restante dos agentes econĂŽmicos, que a literatura denomina de “pĂșblico”. Por outro lado, como se sabe, o governo pode financiar os seus gastos de trĂȘs maneiras, nĂŁo mutuamente excludentes: contrair dĂvida junto ao setor privado, aumentar tributos e expandir a oferta de moeda. Por fim, Ă© preciso levar em conta o papel que as expectativas representam nas decisĂ”es do “pĂșblico”: se, por alguma razĂŁo (como ocorre no momento), esperam-se preços mais altos no futuro, por que esperar isso acontecer, se cada agente achar que pode obter vantagens sobre os demais caso aumente o preço dos seus produtos agora?
Por isso, Ă© importantĂssimo olhar para o modo como se relacionam entre si as autoridades fiscais e monetĂĄrias. HĂĄ trĂȘs tipos de relaçÔes.
Na primeira, o Banco Central nĂŁo Ă© independente e nĂŁo existe expectativa de aumento de preços. Nesse caso, se o Banco Central adotar uma polĂtica de austeridade monetĂĄria, as autoridades fiscais terĂŁo de financiar o seu dĂ©ficit tomando mais dĂvida, o que fatalmente jogarĂĄ a taxa de juros para cima, e, mais cedo ou mais tarde, a autoridade monetĂĄria serĂĄ forçada a sancionar a inflação. Portanto, neste primeiro caso, apertos na polĂtica monetĂĄria hoje podem implicar inflação no futuro.
Na segunda, o Banco Central tambĂ©m nĂŁo Ă© autĂŽnomo, mas hĂĄ expectativas de que os preços vĂŁo subir. Nesse caso, o dĂ©ficit fiscal terĂĄ de ser suprido tambĂ©m por mais dĂvida, isso tambĂ©m vai provocar aumentos na taxa de juros, mas, dada a influĂȘncia das expectativas, os agentes econĂŽmicos anteciparĂŁo a inflação de preços, obrigando a autoridade monetĂĄria a sancionĂĄ-la jĂĄ, pela emissĂŁo de moeda. Portanto, na presença de expectativas de inflação, apertos na polĂtica monetĂĄria agora podem significar inflação imediata.
Por fim, a terceira relação acontece quando o Banco Central Ă© independente (como o nosso) e as autoridades fiscais continuam a gerar dĂ©ficits substanciais, como tudo indica que virĂĄ a acontecer no Brasil. Nesse caso, a queda de braço entre polĂtica monetĂĄria austera e polĂtica fiscal festeira fatalmente vai desembocar em quebradeira generalizada: pelo lado monetĂĄrio, o Banco Central terĂĄ de aumentar seguidamente e cada vez mais a taxa de juros, em razĂŁo de sua obstinação em nĂŁo admitir inflação; e, pelo lado fiscal, o crescimento vertiginoso da alternativa solitĂĄria para financiar o dĂ©ficit, ou seja, da dĂvida pĂșblica, implicarĂĄ irremediavelmente aumento da taxa de juros. O resultado de tudo isso Ă© que provavelmente a inflação nĂŁo vai explodir, mas o Estado vai literalmente quebrar, arrastando com ele o setor produtivo, ou seja, empresas, empreendedores e trabalhadores.
Isso que vocĂȘ acabou de ler, por mais preocupaçÔes que acarrete, nĂŁo tem absolutamente nada a ver com ideologia polĂtica, nem com essa ou aquela escola de pensamento econĂŽmico, nem com simpatias ou antipatias por esse ou aquele economista ou aqueloutro polĂtico. Ă, simplesmente, aritmĂ©tica bĂĄsica, aquele velhĂssimo conjunto de operaçÔes numĂ©ricas elementares, ensinado desde a nossa mais tenra infĂąncia por alguma “tia” abnegada e querida.
E o custo de se desafiar a aritmĂ©tica, nesse caso, poderĂĄ ser extremamente elevado. Força, SĂsifo!
*Publicado originalmente no blog do autor.
Ubiratan Jorge Iorio Ă© economista, professor e escritor.
PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/a-economia-e-a-sindrome-de-sisifo/