por Fernando Gabeira O Globo
Batom na cueca e revólver fumegante são duas imagens que dizem a mesma
coisa: uma prova contundente. A imagem brasileira inspira-se na
sensualidade, a americana expressa mais uma cultura bélica, tecnológica.
O fato é todos entendem que alguma coisa decisiva foi descoberta.
Nos filmes policiais americanos, o revólver fumegante às vezes aparece
num simples detalhe esquadrinhado pelos equipamentos científicos. Aqui
no Brasil também houve um avanço científico na busca de provas. A
Operação Lava-Jato soube recolher e cruzar dados, estabeleceu conexões
internacionais. Isso é novo no país. Mas ao contrário de crimes
individuais, ele desvenda uma organização que se moveu na confluência
pantanosa da política e das grandes empresas. E o faz num período
pós-moderno em que ainda tem força a tese de que as evidências não
importam e sim as narrativas. Uma variante apenas da antiga expressão:
os fatos não interessam e sim as suas versões.
Quando um empresário preso por corrupção em obras da Petrobras afirmou
que deu quase dez milhões para a campanha de Dilma, em troca de negócios
na Petrobras, já estávamos diante de algo contundente. Ao aparecer em
suas anotações uma conexão clara entre o dinheiro, o PT e o resgate do
dinheiro da Petrobras, isso configura um batom na cueca. É inevitável
que as contas de Dilma sejam analisadas pelo TSE a partir dessa
denúncia. Caberá a cada ministro decidir se o empresário deu o dinheiro
como propina ou simplesmente pelo amor à democracia.
Da mesma maneira, as contas de Eduardo Cunha na Suíça são um batom na
cueca. Ele foi campeão nas citações dos delatores premiados. Um deles
afirmou que depositou o dinheiro precisamente em sua conta na Suíça. Um
homem sem mandato estaria preso para explicar tudo isso. Mas vamos
levando o faz de conta, todos sabendo que o país foi assaltado e por
quem foi assaltado. Na cultura sensual brasileira, é conhecida a frase
de Nelson Rodrigues de que o homem deve negar sempre um encontro
amoroso, mesmo com o batom na cueca.
Isso se estende à política. Na tática Paulo Maluf, por exemplo: não
tenho conta na Suíça e essa assinatura não é minha. E na elaborada
tática petista: não existe nada estranho, exceto o seu olhar nublado
pela ideologia conservadora, elitista etc. Uma medida provisória para
isentar a indústria automobilística em R$ 1,3 bilhões em impostos foi
assinada por Lula. Uma empresa de lobby gastou R$ 36 milhões com
propinas para que isto acontecesse. Desse dinheiro, R$ 2,4 milhão foi
pago pela empresa lobista ao filho do ex-presidente. Isso pra mim é
batom na cueca. Sempre se pode dizer que foram prestadas consultorias de
marketing esportivo. Mas qual grande gigante da indústria gastaria
tanto em assessoria de marketing?
Da mesma maneira, no caso do dinheiro de Ricardo Pessoa para a campanha,
o nome da Petrobras está grafado como PB: pode se dizer que PB quer
dizer dizer Paraíba ou pequena burguesia e assim por diante, neste jogo
interminável.
O governo e os partidos que assaltaram a Petrobras não vão sair ilesos.
Mesmo se a Justiça for muito sinuosa, se os ministros amigos derem uma
pequena ajuda, se alguns formadores de opinião torcerem os fatos, a
sociedade já viu, ouviu, leu documentos suficientes para ver o batom na
cueca.
Isso não é uma expressão jurídica. É apenas uma constatação ao alcance
de todos, uma imagem popular. Não há como negá-la. Dizer que não usa
cueca, que a mancha veio da lavanderia? Com as contas reprovadas pelo
TCU, o que também é novo no país, o governo ainda tem a campanha sob
investigação: tudo vai desabar no Congresso e seus labirintos. Não
importa o caminho tortuoso das evidências pelas instituições. A
sociedade brasileira já sabe o que aconteceu.
É nessa brecha entre a consciência social e as instituições, algumas
aparelhadas pelo petismo, que mora o perigo. Não é preciso grandes
termômetros para sentir que sobe a temperatura nas ruas. O escritor
moçambicano Mia Couto disse que às vezes pensamos que estamos na nossa
cidade, mas ela nos escapa, vivemos apenas um sonho de estar nela. Nesse
caso, pensamos que vivemos num país mas ele nos escapa como se fôssemos
estrangeiros. Os fatos, o conjunto de leis, tudo isso é relativizado
numa esfera longínqua. O batom na cueca, o revólver fumegante se
tornaram tão frequentes quanto um guarda-chuva esquecido ou o resfriado
na virada do tempo. Mas nunca é demais lembrar que não há nada de errado
com nossos olhos: a paisagem é moralmente desoladora. Daí a irritação
das pessoas que insultam petistas nos lugares públicos. Gritam ladrões,
mas no fundo deveriam pedir que lhes devolva um Brasil inteligível, um
país em que os fatos evidentes tenham consequência.
No sua dramaticidade cívica, o hino diz: ou ficar a pátria livre ou
morrer pelo Brasil. De fato, o dilema agora é impor a realidade ou viver
num outro Brasil, esse estranho país em que os fatos ainda são
atropelados pelas versões do poder.
extraídaderota2014blogspot





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