por Marco Antonio Villa O Globo
A tarefa para os brasileiros é se safar, política e democraticamente, do criador e da criatura. É uma questão de sobrevivência
O Brasil está numa encruzilhada histórica. Para onde ir? Na República
Velha, com todos os defeitos — que eram muitos —, a institucionalidade
existente foi um anteparo durante mais de quatro décadas ao caudilhismo.
Os principais líderes do período ficaram impossibilitados de exercer o
poder à semelhança dos países platinos, assolados por este fenômeno
desde o processo independentista. Um fazedor de presidentes, como o
senador Pinheiro Machado, teve, se tanto, uma década de efetivo poder e,
mesmo assim, não conseguiu chegar ao Palácio do Catete.
Os quinze anos do primeiro governo Getúlio Vargas se constituíram no
primeiro momento que uma liderança caudilhista teve efetiva presença na
cena política nacional. A ausência de liberdades durante mais de dez
anos — excetuando o breve período 1934-1937 — acabou facilitando a
consolidação da figura de Vargas, sem ter de travar um enfrentamento
político com opositores devido à enorme concentração de poderes nas suas
mãos.
O breve período democrático (1945-1964) acabou abrindo a possibilidade
para a primeira liderança política efetiva, resultado do livre jogo
eleitoral. Juscelino Kubitschek transformou seu quinquênio presidencial
numa referência positiva de autoridade, dialogando com a oposição,
injetando o país de otimismo e obtendo importantes vitórias no campo
econômico.
O ciclo militar impossibilitou o surgimento de lideranças castrenses em
parte devido às modificações adotadas, em 1965, que limitaram a
permanência de oficiais em postos de comando e no mesmo grau
hierárquico. A grande figura civil que emergiu do período foi Ulysses
Guimarães, que, devido a diversas circunstâncias políticas, teve de
ceder o posto para Tancredo Neves, como candidato oposicionista, em
janeiro de 1985. A morte do presidente eleito e as particularidades da
Nova República não permitiram ao Dr. Ulysses reassumir o papel exercido
nos últimos anos do regime militar.
O processo eleitoral de 1989 deu ao país a possibilidade de restabelecer
a democracia plena. Contudo, por decorrência de uma eleição solteira e
do desgaste da presidência Sarney, acabou abrindo, pela primeira vez, as
portas do Palácio do Planalto para dois candidatos antagônicos mas —
paradoxalmente — similares. Incorporaram o figurino caudilhista, o
salvacionismo popular, que, na República, ainda não tinha tido uma
tradução tão perfeita como em Fernando Collor e Lula.
O impeachment acabou sinalizando a possibilidade de uma efetiva
institucionalização da estrutura fundada pela Constituição de 1988. A
ascensão de Itamar Franco ao governo, presidente sem carisma e nenhuma
veleidade de caudilho, permitiu que sua sucessão ocorresse sem traumas e
dentro da ordem constitucional. Fernando Henrique governou por oito
anos e, na essência, de forma muito parecida com a do seu antecessor.
O ponto de ruptura ocorreu em 2002. A falta de compreensão da
importância da eleição — deu até a impressão que o presidente desejava o
triunfo do opositor — levou à vitória de Lula e do espírito
caudilhista. Desde então a sua presença ofuscou, inclusive, lideranças
do seu partido. O país passou a girar em torno dele, um caudilho de
velho tipo, mesmo em plena vigência — suprema contradição! — da mais
democrática e aperfeiçoada das constituições brasileiras.
Enquanto a economia dava sinais de vitalidade foi possível conciliar —
na aparência — o caudilhismo com a democracia. Na essência, como seria
de se esperar, foram solapados os fundamentos do Estado Democrático de
Direito. A estruturação do que foi definido, com propriedade, na Ação
Penal 470 como um projeto criminoso de poder, associou pela primeira vez
na nossa história caudilhismo com um sólido partido político, dando
sentido único a uma anomalia, que foi ocupando as estruturas de Estado.
A passagem do poder do criador para a criatura — sem carisma e história —
trouxe mais um componente de crise. Que se agravou com as sérias
dificuldades econômicas manifestadas a partir de 2013. O sistema
político-institucional foi se esfarelando, não conseguindo dar respostas
aos anseios da sociedade civil.
Vivemos o momento mais difícil desde a redemocratização de 1985. Não
sabemos para onde ir. E o futuro próximo se avizinha cinzento. A pressão
popular é desconsiderada pelos donos do poder. A desmoralização das
instituições é evidente. Dois chefes de poderes — Dilma Rousseff e
Ricardo Lewandowski — se encontraram em território estrangeiro para
discutir não se sabe o quê. Ministro é acusado de chantagista cordial —
ah, bons tempos do homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda — e nada
acontece. O PT teve um tesoureiro condenado pelo Superior Tribunal
Federal por corrupção ativa e formação de quadrilha e seu sucessor,
desde abril, também está preso. Em que país do mundo democrático há um
partido no governo que tenha seus dois últimos tesoureiros presos?
Brasília está desconectada do Brasil.
A vida segue na Praça dos Três Poderes como se o país vivesse no melhor
dos mundos. A presidente diz que não vai cair com a maior naturalidade.
Porém, dificilmente vai comer o peru de Natal no Palácio do Planalto. A
gravidade da crise é tão grande que até seu criador está procurando uma
forma de se livrar da criatura. O caudilho, que destruiu as instituições
de Estado, tem plena consciência do significado negativo da permanência
de Dilma para seu projeto pessoal. A tarefa para os brasileiros é se
safar — política e democraticamente — tanto do criador, como da
criatura.
É uma questão de sobrevivência.
extraídaderota2014blogspot





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