FERNANDO GABEIRA - O GLOBO
É possível ver o poder no Brasil como um triângulo: Dilma, Renan e
Cunha. Olhando melhor, acho que é um círculo. Dilma é a expressão
momentânea de um projeto cuja ideia fundamental é a de que os fins
justificam os meios. Renan e Cunha são os instrumentos usados para
enfraquecer o projeto de Dilma. Combatemos o PT com seu próprio veneno: o
círculo se fecha, o triângulo é apenas uma ilusão.
O que me ajudou a concluir isto foi um texto de Maurice Blanchot sobre
Hermann Broch. O escritor austríaco, em “Huguenau ou o realismo”,
descreve um sistema onde não são os homens que se digladiam nem
acontecimentos que se chocam. O que está em jogo são os valores de que
as pessoas são protagonistas. No interior desse mundo singular, que é o
mundo do sucesso, o Huguenau de Hermann Broch só pode destruir aquilo
que o estorva.
Ele não terá remorso nem mesmo lembrança do seu ato. Não percebe, em momento algum, o caráter irregular de sua ação.
Blanchot acentua: não é um herói de Dostoiévski, o tempo dos Demônios já
passou: “Temos em Huguenau o primeiro dos homens comuns que, protegidos
por um sistema e justificados por ele, vão tornar-se, sem ao menos o
saber, burocratas do crime e contadores da violência”.
Transportando-me da literatura para a política, talvez tivesse sido mais
brando com Dilma, Renan e Cunha se os encarasse apenas como parte de um
sistema decadente que nos envolve a todos. Jamais vi uma centelha de
inteligência nos discursos, entrevistas e debates de Dilma. Leio agora
na entrevista da senadora Marta Suplicy que Dilma é muito culta, gosta
de arte e conhece profundamente vários museus. O repórter não pediu para
Marta elaborar sobre isso de conhecer profundamente vários museus. Mas,
no mínimo, é uma inteligência topográfica, qualidade que deve estimular
várias outras.
Sobre Renan, no passado, cheguei a formular um cartaz em que aparece com
um chapéu de cangaceiro e o seguinte texto: “Se entrega, Corisco”.
No caso de Eduardo Cunha, cheguei a conectar seu olhar enviesado com um
estado de espírito, de alguém sempre escondido tramando algo sospechoso.
Apesar de tudo, tanto Renan como Cunha, em seus impecáveis
profissionalismos, sempre me trataram com gentileza, talvez por
compreender que vivo num mundo de Dostoiévski, cercado de demônios que
se extinguiram como os dinossauros, a máquina de escrever ou o emplastro
Sabiá.
Quase toda semana, um empreiteiro preso ameaça arrastar para o escândalo
do Petrolão Lula e o governo do PT. Mas é tudo objeto de cálculo,
engenheiros pensam coisas claras. O que é melhor: delatar agora e
reduzir a pena, ou ser condenado e protelar a execução da pena por
vários anos? Com o tempo vão se unir como nas licitações e retalhar as
denúncias premiadas como o fazem com as grandes obras: a OAS denuncia um
edifício, a Camargo Corrêa uma usina, a racionalidade os acompanhará
até o fim.
Vivem como nos Sonâmbulos de Hermann Broch, onde se assiste, segundo Blanchot, a uma nova forma de destino: o destino da lógica.
Transitar do triângulo ao círculo é admitir que há algo mais amplo no
processo de decadência da vida pública brasileira. Mas não é fácil para
meus modestos recursos. Tudo que posso é apenas querer alcançar o ponto
de fechamento do círculo e ganhar o direito de observar desse ponto um
todo unido. Como dizia Rilke: gosto quando o círculo se fecha, quando
uma coisa se junta à outra: nada mais sábio que o círculo. Os orientais
também pensavam assim, e Jung fez das mandalas o símbolo máximo da
maturidade psicológica.
Por enquanto ainda me perco nos triângulos e quadriláteros, apenas
arranho a lógica dominante para encontrar nela os sintomas da
irracionalidade.
Cunha contra Dilma, Renan contra Cunha, os lados se movem e não consigo
ver nisto nada além de um triângulo das Bermudas onde desaparecem os
frágeis barquinhos da esperança. Certamente serei acusado de pessimista,
querendo ver abaixo toda essa figura geométrica. A realidade é dura, os
seres humanos limitados, precisamos avançar com calma, dentro das
condições existentes.
O PT jamais hesitaria em usar Cunha e Renan para alcançar seus
objetivos. Mas o que deixou para a sociedade como esperança de
neutralizá-lo é um Congresso independente, liderado precisamente por
Cunha e Renan.
Deus me livre, mas creio que não estou sendo exato falando de um
círculo. Trato de um problema que não se resolve com régua e compasso: a
quadratura do círculo. Talvez olhando para fora, vendo a sociedade em
movimento, consiga vislumbrar a saída.
Certamente não virá de manifestações marcadas com um rígido calendário,
como se a indignação tivesse que se submeter também ao compasso
burocrático.
No passado sonhávamos com a imaginação no poder. Reduzidos os sonhos, vamos esperar, pelo menos, a imaginação na esquina.
EXTRAÍDADOBLOGROTA2014





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